sábado, 27 de fevereiro de 2010

LE GOFF, Jacques. História e Memória

MEMÓRIA

O conceito de memória é crucial. Embora o presente ensaio seja exclusivamente dedicado à memória tal como ela surge nas ciências humanas (fundamentalmente na história e na antropologia), e se ocupe mais da memória coletiva que das memórias individuais, é importante descrever sumariamente a nebulosa memória no campo científico global.
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.
Deste ponto de vista, o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e, quanto às perturbações da memória, das quais a amnésia é a principal, a psiquiatria [cf. Meudlers, Brion e Ueury, 1971; Florès, 1972].
Certos aspectos do estudo da memória, no interior de qualquer uma destas ciências, podem evocar, de forma metafórica ou de forma concreta, traços e problemas da memória histórica e da memória social [cf. Morin e Piattelli Palmarini, 1974]
A noção de aprendizagem, importante na fase de aquisição da memória, desperta o interesse pelos diversos sistemas de educação da memória que existiram nas várias sociedades e em diferentes épocas: as mnemotécnicas.

Todas as teorias que conduzem de algum modo à idéia de uma atualização mais ou menos mecânica de vestígios mnemônicos foram abandonadas, em favor de concepções mais complexas da atividade mnemônica do cérebro e do sistema nervoso: "O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios" e os processos de releitura podem fazer intervir centros nervosos muito complexos e uma grande parte do córtex", mas existe "um certo número de centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico" [Changeux, 1972, p. 356].

O estudo da aquisição da memória pelas crianças permitiu assim constatar o grande papel desempenhado pela inteligência (cf. Piaget e Inheller, 1968). Na linha desta tese, Scandia de, Schonen declara: "A característica das condutas perceptivocognitivas que nos parece fundamental é o aspecto ativo e construtivo dessas condutas" [1974, p. 294], e acrescenta: "Podemos pois concluir que se desenvolveram ulteriores investigações que tratam do problema das atividades mnésicas, integradas ao conjunto das atividades perceptivo-cognitivas, no âmbito das atividades que visam organizar-se da mesma maneira, na mesma situação, ou adaptarem-se a novas situações. E talvez só pagando este preço compreenderemos um dia a natureza da recordação humana que impede tão prodigiosamente as nossas problemáticas" [ibid., p. 302].
Descendem daqui diversas concepções recentes da memória, que põem a tônica nos aspectos de estruturação, nas atividades de auto-organização. Os fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, mais não são do que os resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas existem "na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui".
Alguns cientistas foram assim levados a aproximar a memória de fenômenos diretamente ligados à esfera das ciências humanas e sociais.
Assim, Pierre Janet "considera que o ato mnemônico fundamental é o "comportamento narrativo" que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois que é comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo" [Florès, 1972, p. 12]. Aqui intervém a "linguagem, ela própria produto da sociedade" (ibid). Deste modo, Henri Atlan, estudando os sistemas auto-organizadores, aproxima "linguagens e memórias"; "A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer nos outros quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória" [1972, p. 461].
Ainda é mais evidente que as perturbações da memória, que, ao lado da amnésia, se podem manifestar também no nível da linguagem na afasia, devem em numerosos casos esclarecerse se também à luz das ciências sociais. Por outro lado, num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva.
As ligações entre as diferentes formas de memória podem, aliás, apresentar caracteres não-metafóricos, mas reais. Goody, por exemplo, observa: "Em todas as sociedades, os indivíduos detêm uma grande quantidade de informações no seu patrimônio genético, na sua memória a longo prazo e, temporariamente, na memória ativa" [1977a, p. 35].
Leroi-Gourhan considera a memória em sentido lato e distingue três tipos de memória: memória específica, memória étnica, memória artificial: "Memória é entendida, nesta obra, em sentido muito lato. Não é uma propriedade da inteligência, mas a base, seja ela qual for, sobre a qual se inscrevem as concatenações de atos. Podemos a este título falar de uma "memória específica" para definir a fixação dos comportamentos de espécies animais, de uma memória "étnica" que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas e, no mesmo sentido, de uma memória "artificial", eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados" [ 196465, p. 269].
Numa época muito recente, os desenvolvimentos da cibernética e da biologia enriqueceram consideravelmente, sobretudo metaforicamente e em relação com a memória humana consciente, a noção de memória. Fala-se da memória central dos computadores e o código genético é apresentado como uma memória da hereditariedade [cf. Jacob', 1970]. Mas esta extensão da memória à máquina e à vida e, paradoxalmente, a uma e a outra conjuntamente, teve repercussões diretas sobre as pesquisas dos psicólogos sobre a memória, passando-se de um estágio fundamentalmente empírico a um estágio mais técnico: "A partir de 1950, os interesses mudaram radicalmente, em parte por influência de novas ciências como a cibernética e a lingüística, para tomarem uma opção mais teórica" [Disury, em Meudlers, Brion e Levry, 1971, p. 789]
Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento (nomeadamente no seguimento de Ebbinghaus), nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.
O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento.
No estudo histórico da memória histórica é necessário dar uma importância especial às diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e sociedades de memória essencialmente escrita como também às fases de transição da oralidade à escrita, a que Jack Goody chama "a domesticação do pensamento selvagem".
Estudaremos pois sucessivamente:
1) a memória étnica nas sociedades sem escrita, ditas "selvagens";
2) o desenvolvimento da memória, da oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade; 3) a memória medieval, em equilíbrio entre o oral e o escrito;
4) os progressos da memória escrita, do século XVI aos nossos dias;
5) os desenvolvimentos atuais da memória.

Este procedimento inspira-se no de Leroi-Gourhan: "A história da memória coletiva pode dividir-se em cinco períodos: o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da,seriação eletrônica" [1964-65, p. 65]

Pareceu preferível, para valorizar melhor as relações entre a memória e a história, que constituem o horizonte principal deste ensaio, evocar separadamente a memória nas sociedades sem escrita antigas ou modernas – distinguindo na história da memória, nas sociedades que têm simultaneamente memória oral e memória escrita, a fase antiga de predominância da memória oral em que a memória escrita ou figurada tem funções específicas; a fase medieval de equilíbrio entre as duas memórias com transformações importantes das funções de cada uma delas; a fase moderna de processos decisivos da memória escrita, ligada à imprensa e à alfabetização; e, por fim, reagrupar os desenvolvimentos do último século relativamente ao que Leroi-Gourhan chama "a memória em expansão".

1. A memória étnica
Contrariamente a Leroi-Gourhan que aplica este termo a todas as sociedades humanas, preferir-se-á reservar a designação de memória coletiva para os povos sem escrita. Notemos, sem insistir mas sem esquecer a importância do fenômeno, que a atividade mnésica fora da escrita é uma atividade constante não só nas sociedades sem escrita, como nas que a possuem. Goody lembrou-o recentemente com pertinência: "Na maior parte das culturas sem escrita, e em numerosos setores da nossa, a acumulação de elementos na memória faz parte da vida cotidiana" [1977a, p. 35].
Esta distinção entre culturas orais e culturas escritas, relativamente às funções confiadas à memória, parece fundada no fato de as relações entre estas culturas se situarem a meio caminho de duas correntes igualmente erradas pelo seu radicalismo, "uma afirmando que todos os homens têm as mesmas possibilidades; a outra estabelecendo, implícita ou explicitamente, uma distinção maior entre 'eles' e 'nós"' [ibid., p. 151. A verdade é que a cultura dos homens sem escrita é diferente, mas não absolutamente diversa.
O primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico – à existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem.
Balandier, evocando a memória histórica dos habitantes do Congo, nota: "Os inicios parecem tanto mais exaltantes precisamente quanto menos se inscrevem na recordação. O Congo nunca foi tão vasto como no tempo da sua história obscura" [1965, p. 15]
Nadel distingue, a propósito dos Nupe da Nigéria, dois tipos de história: por um lado, a história a que chama "objetiva" e que é "a série dos fatos que nós, investigadores, descrevemos e estabelecemos om base em certos critérios "objetivos" universais no que z respeito às suas relações e sucessão" [1942, ed. 1969, p. 721 e, por outro lado, a história a que chama "ideológica" e "que descreve e ordena esses fatos de acordo com certas tradições estabelecidas" [ibid.]. Esta segunda história é a memória coletiva, que tende a confundir a história e o mito. E esta "história ideológica" vira-se de preferência para "os primórdios do reino", para "a personagem de Tsoede ou Edegi, herói cultural e mítico fundador do reino Nupe" [ibid.]. A história dos inícios torna-se assim, para retomar uma expressão de Malinowski, um "cantar mítico" da tradição.
Esta memória coletiva das sociedades "selvagens" interessa-se mais particularmente pelos conhecimentos práticos, técnicos, de saber profissional. Para a aprendizagem dessa "memória técnica", como nota Leroi-Gourhan, "a estruturação social dos ofícios tem um papel importante, quer se trate dos metalúmpicos da África ou dos da Ásia, quer das nossas corporações até o século XVII. A aprendizagem e a conservação dos segredos dos ofícios joga-se em cada uma das células sociais da etnia" [ 196465, p. 66]. Condominas [1965] encontrou nos Moi do Vietnã central a mesma polarização da memória coletiva em torno dos tempos das origens e do herói mítico. A atração do passado ancestral sobre a "memória selvagem" verifica-se também nos nomes próprios. No Congo, nota Balandier, depois do clã ter imposto ao recém-nascido um primeiro nome dito "de nascença", dá-lhe um segundo, mas oficial, que suplanta o primeiro. Este segundo nome "perpetua a memória de um antepassado ancestral – cujo nome é assim "desenterrado" – escolhido em função da veneração de que é objeto" [1965, p. 227].
Nestas sociedades sem escrita há especialistas da memória, homens-memória: "genealogistas", guardiões dos códices reais, historiadores da corte, "tradicionalistas", dos quais Balandier [1974, p. 207] diz que são "a memória da sociedade" e que são simultaneamente os depositários da história "objetiva" e da história "ideológica", para retomar o vocabulário de Nadel. Mas também "chefes de família idosos, bardos, sacerdotes", segundo a lista de Leroi-Gourhan que reconhece a esses personagens "na humanidade tradicional, o importantíssimo papel de manter a coesão do grupo" [1964-65, p. 66].
Mas é necessário sublinhar que, contrariamente ao que em geral se crê, a memória transmitida pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória "palavra por palavra". Goody provou-o estudando o mito do Bagre recolhido entre os LoDagaa do norte do Gana. Observou as numerosas variantes nas diversas versões do mito, mesmo nos fragmentos mais estereotipados. Os homens-memória, na ocorrência narradores, não
desempenham o mesmo papel que os mestres-escolas (e a escola não aparece senão com a escrita). Não se desenvolve em torno deles uma aprendizagem mecânica automática. Mas, segundo Goody, nas sociedades sem escrita não há unicamente dificuldades objetivas na memorização integral, palavra por palavra, mas também o fato de que "este gênero de atividade raramente é sentido como necessário"; "o produto de uma rememoração exata" aparece nestas sociedades como "menos útil, menos apreciável que o fruto de uma evocação inexata" [1977a, p. 38]. Assim, constata-se raramente a existência de procedimentos mnemotécnicos nestas sociedades (um dos casos raros é o quipo peruano, clássico na literatura etnológica). A memória coletiva parece, portanto, funcionar nestas sociedades segundo uma "reconstrução generativa" e não segundo uma memorização mecânica. Assim, segundo Goody, "o suporte da rememorização não se situa ao nível superficial em que opera a memória da "palavra por palavra", nem ao nível das estruturas "profundas" que numerosos mitólogos encontram... Parece pelo contrário que o papel importante cabe à dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos" ("événementielles") [ibid., p. 34].
Assim, enquanto que a reprodução mnemônica palavra por f palavra estaria ligada à escrita, as sociedades sem escrita, excetuando certas práticas de memorização ne varietur, das quais a principal é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas.
Talvez esta hipótese explicasse uma notação surpreendente de César no De Bello Gallico. A propósito dos druidas gauleses junto dos quais muitos jovens vêm instruir-se, César escreve: "Aí, aprendem de cor, segundo o que se diz, um grande número de versos. Por isso, alguns permanecem vinte anos nessa aprendizagem. Não crêem porém lícito transcrever os dogmas da sua ciência, enquanto que para as restantes coisas em geral, para as normas públicas e privadas, se servem do alfabeto grego. Parece-me que estabeleceram este uso por duas razões: porque não querem nem divulgar a sua doutrina nem ver os seus alunos negligenciar, a memória confiando na escrita; porque acontece quase sempre que a ajuda dos textos tem por conseqüência um menor zelo em aprender de cor e uma diminuição da memória" [De Bello Gallico, VI, 14, 3-4].
Transmissão de conhecimentos considerados como secretos, vontade de manter em boa forma uma memória mais criadora que repetitiva; não estarão aqui duas das principais razões da vitalidade da memória coletiva nas sociedades sem escrita?
2. O desenvolvimento da memória: da oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade
Nas sociedades sem escrita a memória coletiva parece ordenar-se em torno de três grandes interesses: a idade coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, o prestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias, e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa.

O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda transformação da memória coletiva. Desde a "Idade Média ao Paleolítico" aparecem figuras onde se propôs ver "mitogramas" paralelos à "mitologia" que se desenvolve na ordem verbal. A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável. A memória assume então a forma de inscrição e suscitou na época moderna uma ciência auxiliar da história, a epigrafia. Certamente que o mundo das inscrições é muito diverso. Robert sublinhou a sua heterogeneidade: "São coisas muito diferentes entre si a runa, a epigrafia turca do Orkhon, as epigrafias fenícia ou neopúnica ou hebraica ou sabeana ou iraniana, ou a epigrafia árabe ou as inscrições khmer" [1961, p. 453].
No Oriente antigo, por exemplo, as inscrições comemorativas deram lugar à multiplicação de monumentos como as estetas e os obeliscos. Na Mesopotâmia predominaram as estelas onde os reis quiseram imortalizar os seus feitos através de representações figuradas, acompanhadas de uma inscrição, desde o III milênio, como o atesta a estela dos Abutres (Paris, Museu do Louvre) onde o rei Eannatum de Lagash (cerva de 2470) fez conservar através de imagens e de inscrições a lembrança de uma vitória. Foram sobretudo os reis acádios que recorreram a esta forma comemorativa. A mais célebre das suas estelas é a de Narãm-Sin, em Susa, onde o rei quis que fosse perpetuada a imagem de um triunfo obtido sobre os povos do Zagros (Paris, Museu do Louvre). Na época assíria, a estela tomou a forma de obelisco, tais como o de Assurbelkala (final do H milênio) em Nínive (Londres, British Museum) e o obelisco negro de Salmanassar III, proveniente de Nimrird, que imortaliza uma vitória do rei no país de Nousri (cerca de 892; Londres, British Museum). Por vezes o monumento comemorativo não possui inscrições e o seu significado permanece obscuro como no caso dos obeliscos de Biblos (início do II milênio) [cf. Deshayes, 1969, pp. 587 e 613; Búdge e King, 1902; Luckenbill, 1924; Ebeling, Meissner e Weidner, 1926]. No Egito antigo, as estelas desempenharam múltiplas funções de perpetuação de uma memória: estelas funerárias comemorando, como em Abidos, uma peregrinação a um túmulo familiar; narrando a vida do morto, como a de Amenemhet sob Tutmosi III; estelas reais comemorando vitórias como a de Israel sob Mineptah (cerca de 1230), único documento egípcio que menciona Israel, provavelmente no momento do êxodo; estelas jurídicas, como as de Karnak (recorde-se que a mais célebre destas estelas jurídicas da Antiguidade é a de Hammurabi, rei da 1á dinastia da Babilônia, entre 1792 e 1750 a.C., que nela fez inscrever o seu código, conservada no Museu do Louvre, em Paris); estelas sacerdotais onde os sacerdotes faziam inscrever os seus privilégios [cf. Daumas, 1965, p. 639]. Mas a época áurea das inscrições foi a da Grécia e a da Roma antigas, a propósito das quais Robert disse: "Poder-se-ia falar para os países gregos e romanos de uma civilização da epigrafia" [1961, p. 454]. Nos templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades, ao longo das estradas até "o mais profundo da montanha, na grande solidão", as inscrições acumulavam-se e obrigavam o mundo greco-romano a um esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da lembrança. A pedra e o mármore serviam na maioria das vezes de suporte a uma sobrecarga de memória. Os "arquivos de pedra" acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos um caráter de publicidade insistente, apostando na ostentação e na durabilidade dessa memória lapidar e marmórea.
A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita (depois de tentativas sobre osso, estofo, pele, como na Rússia antiga; folhas de palmeira, como na índia; carapaça de tartaruga, como na China; e finalmente papiro, pergaminho e papel). Mas importa salientar que (cf. o artigo "Documento/monumento", neste volume da Enciclopédia) todo documento tem em si um caráter de monumento e não existe memória coletiva bruta.
Neste tipo de documento a escrita tem duas funções principais: "Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro"; a outra, "ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual", permite "reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas" [Goody, 1977b, p. 78].
Para Leroi-Gourhan, a evolução da memória, ligada ao aparecimento e à difusão da escrita, depende essencialmente da evolução social e especialmente do desenvolvimento urbano: "A memória coletiva, no início da escrita, não deve romper o seu movimento tradicional a não ser pelo interesse que tem em se fixar de modo excepcional num sistema social nascente. Não é pois pura coincidência o fato de a escrita anotar o que não se fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que constitui a ossatura duma sociedade urbanizada, para a qual o nó do sistema vegetativo está numa economia de circulação entre produtos, celestes e humanos, e dirigentes. A inovação diz respeito ao vértice do sistema e engloba seletivamente os atos financeiros e religiosos, as dedicatórias, as genealogias, o calendário, tudo o que nas novas estruturas das cidades não é fixável na memória de modo completo, nem em cadeias de gestos, nem em produtos" [1964-65, pp. 67-8].
As grandes civilizações, na Mesopotâmia, no Egito, na China e na América pré-colombiana, civilizaram em primeiro lugar a memória escrita no calendário e nas distâncias. "A soma dos fatos que devem ultrapassar as gerações imediatamente seguintes" limita-se à religião, à história e à geografia. "O triplo problema do tempo, do espaço e do homem constitui a matéria memorável" [ibid.].
Memória urbana, memória real também. Não só "a cidade capital se torna o eixo do mundo celeste e da superfície humanizada" [ibid.] (e o ponto focal de uma política da memória), mas o rei em pessoa desdobra um programa de memoração, de que ele constitui o centro, sobre toda a extensão na qual tem autoridade.
Os 'reis criam instituições-memória: arquivos, bibliotecas, museus. Zimrilim (cerca de 1782-59 a.C) faz do seu palácio de Mari, onde foram encontradas numerosas tabuletas, um centro arquivístico. Em Rãs Shamra, na Síria, as escavações do edifício dos arquivos reais de Ougarit permitiram encontrar três depósitos de arquivos no palácio: arquivos diplomáticos, financeiros e administrativos. Nesse mesmo palácio havia uma biblioteca no II milênio antes da nossa %ra e no século VII a.C. era célebre a biblioteca de Assurbanipal em Nínive. Na época helenística brilham a grande biblioteca de Pergamo e a célebre biblioteca de Alexandria, combinada com o famoso museu, criação dos Ptolomeu.
Memória real, pois os reis fazem compor e, por vezes, gravar na pedra anais (ou pelo menos extratos deles) onde estão sobretudo narrados os seus feitos – e que nos levam à fronteira onde a memória se torna "história".
No Oriente antigo, antes de meados do II milênio, não há senão listas dinásticas e narrações lendárias de heróis reais como Sargon ou Narãm-Sin. Mais tarde os soberanos fazem redigir pelos seus escribas relatos mais detalhados dos seus reinados onde emergem vitórias militares, benefícios da sua justiça e progressos do direito, os três domínios dignos de fornecer exemplos memoráveis aos homens do futuro. No Egito, parece, desde a invenção da escrita (um pouco antes do início do III milênio) e até o fim da realeza indígena na época romana, anais reais foram redigidos continuamente. Mas o exemplar único, conservado em frágil papiro desapareceu. Só nos restam alguns extratos gravados na pedra [cf. Daumas, 1965, p. 579].
Na China, os antigos anais reais em bambu datam, sem dúvida, do século IX antes da nossa era, comportando sobretudo perguntas e respostas dos oráculos que formaram um "vasto repertório de receitas de governo" e "a qualidade de arquivista acabou pouco a pouco por vir a pertencer aos adivinhos: eles eram os guardiões dos acontecimentos memoráveis próprios de cada reinado" [Elisseeff, 1979, p. 50].
Memória funerária, enfim, como o testemunham, entre outras, as estelas gregas e os sarcófagos romanos; memória que desempenhou um papel central na evolução do retrato.
Com a passagem da oralidade à escrita, a memória coletiva e mais particularmente a "memória artificial" é profundamente transformada. Goody pensa que o aparecimento de processos mnemotécnicos, permitindo a memorização "palavra por palavra", está ligado à escrita. Mas entende que a existência de escrita "implica também modificações no próprio interior do psiquismo" e "que não se trata simplesmente de um novo saber-fazer técnico, de qualquer coisa comparável, por exemplo, a um processo mnemotécnico, mas de uma nova aptidão intelectual [1977b, pp. 108-9]. No coração desta nova atividade do espírito, Goody coloca a lista, a sucessão de palavras, de conceitos, de gestos, de operações a efetuar numa certa ordem e que permite "descontextualizar" e "recontextualizar" um dado verbal, segundo uma "recodificação lingüística". Em apoio a esta tese, lembra a importância, nas civilizações antigas, das listas lexicais, dos glossários, dos tratados de onomástica assentando na idéia de que nomear é conhecer. Sublinha o alcance das listas sumérias ditas Proto-lzi, e vê nelas um dos instrumentos da irradiação mesopotâmica: "Este gênero de método educacional baseando-se na memorização de listas lexicais teve uma área de extensão que ultrapassava largamente a Mesopotâmia e desempenhou um papel importante na difusão da cultura mesopotâmica e na influência que ela exerceu nas zonas limítrofes: Irã, Armênia, Asia Menor, Síria, Palestina e mesmo o Egito na época do Novo Império" [ibid., p. 99].
Acrescentemos que este modelo deve ser precisado de acordo com o tipo de sociedade e o momento histórico em que se faz a passagem de um tipo de memória para outro. Não se pode aplicar sem especificações à passagem do oral para o escrito nas sociedades antigas, às sociedades "selvagens" modernas ou contemporâneas, ou às sociedades muçulmanas. Eickelmann [1978] mostrou que no mundo muçulmano permanece um tipo de memória fundado na memorização de uma cultura ao mesmo tempo oral e escrita até cerca de 1430; depois muda e faz lembrar os laços fundamentais entre escola e memória em todas as sociedades.
Os mais antigos tratados egípcios de onomástica, talvez inspirados por modelos sumérios, não datam senão de cerca de 1100 a.C. [cf. Gardiner, 1947, p. 38].
Deve-se com efeito perguntar a que está por seu turno ligada esta transformação da atividade intelectual revelada pela "memória artificial" escrita. Pensou-se na necessidade de memorização dos valores numéricos (entalhes regulares, cordas com nós, etc.) como também numa ligação com o desenvolvimento mento do comércio. É necessário ir mais longe e relacionar esta expansão das listas com a instalação do poder monárquico. A memorização pelo inventário, pela lista hierarquizada não é unicamente uma atividade nova de organização do saber, mas um aspecto da organização de um poder novo.
É também ao período da realeza que é preciso fazer remontar, na Grécia antiga, estas listas das quais se encontra um eco nos poemas homéricos. No Canto II da Ilíada acham-se, sucessivamente, o catálogo dos navios, depois o catálogo dos melhores guerreiros e dos melhores cavalos aqueus, e, logo em seguida, o catálogo do exército troiano. "O conjunto forma aproximadamente metade do Canto II, cerca de 400 versos compostos quase exclusivamente por uma sucessão de nomes próprios, o que supõe um verdadeiro exercício de memória" [Vemant, 1965, pp. 55-56].
Com os Gregos, percebe-se, de forma clara, a evolução para uma história da memória coletiva. Transpondo um estudo de Ignace Meyerson sobre a memória individual para a memória coletiva, tal como ela aparece na Grécia antiga, Vernant sublinha: "A memória, distinguindo-se do hábito, representa uma difícil invenção, a conquista progressiva pelo homem do seu passado individual; como a história constitui para o grupo social a conquista do seu passado coletivo" [ibid., p. 41]. Mas entre os Gregos, da mesma forma que a memória escrita se vem acrescentar à memória oral, transformando-a, a, história vem substituir a memória coletiva, transformando-a, mas sem a destruir. Divinização e, depois, laicização da memória, nascimento da mnemotécnica: tal é o rico quadro que oferece a memória coletiva grega entre Hesíodo e Aristóteles, entre os séculos VIII e IV.
A passagem da memória oral à memória escrita é certamente difícil de compreender. Mas uma instituição e um texto podem talvez ajudar-nos a reconstruir o que se deve ter passado na Grécia arcaica.
A instituição é a do mnemon que "permite observar o aparecimento, no direito, de uma função social da memória" [Gernet, 1968, p. 285]. O mnemon é uma pessoa que guarda a lembrança do passado em vista de uma decisão de justiça. Pode ser uma pessoa cujo papel de "memória" está limitado a uma operação ocasional. Por exemplo, Teofrasto assinala que na lei de Thurium os três vizinhos mais próximos da propriedade vendida recebem uma peça de moeda "em vista de lembranças e de testemunho". Mas pode ser também uma função durável. O aparecimento destes funcionários da memória lembra os fenômenos que já evocamos: a relação com o mito, com a urbanização. Na mitologia e na lenda, o mnemon é o servidor de um herói que o acompanha sem cessar para lhe lembrar uma ordem divina cujo esqueçimento traria a morte. Os mnemones são utilizados pelas cidades como magistrados encarregados de conservar na sua memória o que é útil em matéria religiosa (nomeadamente para o calendário) e jurídica. Com o desenvolvimento da escrita estas "memórias vivas" transformam-se em arquivistas.
Por outro lado, Platão, no Fedro [274c-275b], coloca na boca de Sócrates a lenda do deus egípcio Thot, patrono dos escribas e dos funcionários letrados, inventor dos números, do cálculo, da geometria e da astronomia, do jogo de dados e do alfabeto. E sublinha que, fazendo isso, o deus transformou a memória, mas contribuiu sem dúvida mais para enfraquece-la do que para a desenvolvê-la: o alfabeto "engendrará esquecimento nas almas de quem o aprender: estas cessarão de exercitar a memória porque, confiando no que está escrito, chamarão as coisas à mente não já do seu próprio interior, mas do exterior, através de sinais estranhos. Tudo aquilo que encontraste não é uma receita para a memória, mas para trazer as coisas à mente[ibid., 275a]. Pensou-se que este passo reevoca uma sobrevivência das tradições da memória oral [cf. Notopoulos, 1938, p. 476].
A coisa mais notável é sem dúvida "a divinização da memória e a elaboração de uma vasta mitologia da reminiscência na Grécia arcaica" como diz com propriedade Vernant, que generaliza a sua observação: "Nas diversas épocas e nas diversas culturas, há solidariedade entre as técnicas de rememoração praticadas, a organização interna da função, o seu lugar no sistema do eu e a imagem que os homens fazem da memória" [1965, p. 51].
Os Gregos da época arcaica fizeram da Memória uma deusa, Mnemosine. É a mãe das nove musas que ela procriou no decurso de nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e dos seu altos feitos, preside a poesia lírica. O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é6 do futuro. E a testemunha inspirada dos "tempos antigos", da idade heróica e, por isso, da idade das origens.
A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, ima sophia. O poeta tem o seu lugar entre os "mestres da verdade" [cf. Detienne, 1967] e, nas origens da poética grega, a palavra poética é uma inscrição viva que se inscreve na memória como no mármore [cf. Svenbro, 1976]. Dissese que, para Homero, versejar era lembrar.
Mnemosine, revelando ao poeta os segredos do passado, o introduz nos mistérios do além. A memória aparece então como um dom para iniciados e a anamnesis, a reminiscência, como uma técnica ascética e mística. Também a memória joga um papel de primeiro plano nas doutrinas órficas e pitagóricas. Ela é o antídoto do Esquecimento. No inferno órfico, o morto deve evitar a fonte do esquecimento, não deve beber no Letes, mas, pelo contrário, nutrir-se da fonte da Memória, que é uma fonte de imortalidade.
Nos pitagóricos, estas crenças combinam-se com unia doutrina da reencarnação das almas e a via da perfeição é a que conduz à lembrança de todas as vidas anteriores. Aquilo que fazia de Pitágoras, aos olhos dos adeptos destas seitas, um ser intermediário entre o homem e Deus, pelo fato de ter conservado a lembrança das suas reencarnações sucessivas, nomeadamente da sua existência durante a guerra de Tróia sob a figura de Buforba que Menelau tinha morto. Empédocles também lembrava: "Vagabundo exilado da divina existência... fui outrora um rapaz e uma rapariga, um arbusto e um pássaro, um peixe que salta para fora domar..." [em Diels e Kranz, 1915, 31, B.115 e 117].
Assim, na aprendizagem pitagórica, os "exercícios da memória" ocupavam um lugar muito importante. Epiniênides, segundo Aristóteles [Retórica, 1418a, 27] alcançava um êxtase rememorante.
Mas, como Vernant observa com profundidade, "a transposição de Mnemosine e do plano da cosmologia para o da escatologia modifica todo o equilíbrio dos mitos da memória" [1965, p. 61].
Esta colocação da memória fora do tempo separa radicalmente a memória, da história. "O esforço de rememorização, predicado e exaltado no mito, não manifesta o vestígio de um interesse pelo passado, nem uma tentativa de exploração do tempo humano" [ibid., pp. 73-74]. Assim, segundo a sua orientação, a memória pode conduzir à história ou distanciar-se dela. Quando posta ao serviço da escatologia, nutre-se também ela de um verdadeiro ódio pela história (cf. o artigo "Escatologia", neste volume da Enciclopédia).
A filosofia grega, nos seus maiores pensadores, não reconciliou a memória e a história. Se, em Platão e em Aristóteles, â memória é uma componente da alma, não se manifesta contudo ao nível da sua parte intelectual mas, unicamente, da sua parte sensível. Numa passagem célebre do Teeteto [191c-d] de Platão, Sócrates fala do bloco de cera que existe na nossa alma e que é "uma dádiva de Mnemosine, mãe da Musa" e que nos permite guardar as impressões nele feitas com um estilete. A memória platônica perdeu o seu aspecto mítico, mas não procura fazer do passado um conhecimento: quer subtrair-se à experiência temporal.
Para Aristóteles – que distingue a memória propriamente dita, a mnernê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a mcannesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado –, a memória, dessacralizada, laicizada, está "agora incluída no tempo, mas num tempo que permanece, também para Aristóteles, rebelde à inteligibilidade" [Vernant, 1965, p. 78]. Mas o seu tratado De memoria et reminiscentia aparecerá aos grandes escolásticos da Idade Média, Alberto, o Grande e Tomás de Aquino, como uma Arte da memória comparável à Rhetorica ad Herennium, atribuída a Cícero.
Esta laicização da memória combinada com a invenção da escrita permite à Grécia criar novas técnicas de memória: a mnemotecnia. Atribuiu-se tal invenção ao poeta Simônides de Céos (cerca de 556-468). A Cronaca di Paro, incisa numa tábua de mármore cerca de 264 a.C., precisa mesmo que em 477 "Simônides de Céos, filho de Leoprepe, o inventor do sistema dos auxílios mnemônicos, ganha o prêmio do coro em Atenas" [citado em Yates, 1966]. Simônides estava ainda próximo da memória mítica e poética, compondo cantos de elogio aos heróis vitoriosos e cantos fúnebres, por exemplo, à memória dos soldados caídos nas Termópilas. Cícero, no seu De oratore [2, 86], contou, sob a forma de uma lenda religiosa, a invenção da ninemotecnia por Simônides. Durante um banquete oferecido por um nobre da Tessália, Scopa, Simônides cantou um poema em honra de Castor e Pólux. Scopa disse ao poeta que não lhe pagaria senão metade do preço estabelecido e que os próprios Dióscuros lhe pagassem a outra metade. Pouco depois vieram buscar Simônides dizendo-lhe que dois jovens . o chamavam. Ele saiu e não viu ninguém. Mas enquanto estava lá fora o teto da casa afundou-se sobre Scopa e seus convidados, cujos cadáveres esmagados ficaram irreconhecíveis. Simônides, lembrando-se da ordem em que estavam sentados, identificou-os e puderam ser remetidos aos seus respectivos parentes [cf. Yates, 1966, pp. 3 e 27].
Simônides fixava assim dois princípios da memória artificial, segundo os antigos: a lembrança das imagens, necessária à memória, e o recurso a uma organização, uma ordem, essencial para uma boa memória. Sinônides acelerou a dessacralização da memória e acentuou o seu caráter técnico e profissional, aperfeiçoando o alfabeto e sendo o primeiro que se fez pagar pela sua poesia [cf. Vemant, 1965, pp. 78 e 98].
A Simônides seria devida uma distinção capital na mnemotecnia, a distinção entre os lugares da memória, onde se pode por associação dispor os objetos da memória (o zodíaco forneceria em breve um tal quadro à memória, enquanto que a memória artificial se constituía como um edifício dividido em "câmaras de memória") e as imagens, formas, traços característicos, símbolos que permitem a recordação mnemônica.
Depois dele, apareceria uma outra grande distinção da mnemotecnia tradicional, a distinção entre "memória para as coisas" e "memória para as palavras" que se encontra, por exemplo, num texto de aproximadamente 40 a.C., a Dialexeis [cf. Yates, 1966, p. 29].
Curiosamente, nenhum tratado de mnemotécnica da Grécia antiga nos chegou: nem o do sofista Hípias, que, segundo Platão [Hípias Menor, 368d ss.], inculcava nos seus alunos um saber enciclopédico, graças a técnicas de rememoração com caráter puramente positivo; nem o de Metrodoro de Scepsi que vivia no século I a.C. na corte de Mitridato, rei de Ponto, ele mesmo dotado de uma memória artificial baseada no zodíaco.
Estamos sobretudo informados sobre a mnemotecnia grega pelos três textos latinos que, durante séculos, constituíram a teoria clássica da memória artificial (expressão que a eles se deve: memória artificiosa), a Rhetorica ad Herennium, compilada por um mestre anônimo de Roma entre 86 e 82 a.C. e que a Idade Média atribuía a Cícero, o De oratore de Cícero (55 a.C.) e o Institutio oratoria de Quintiliano, no fim do primeiro século da nossa era.
Estes três textos desenvolvem a mnemotecnia grega, fixando a distinção entre lugares e imagens, precisando o caráter ativo dessas imagens no processo de rememoração (imagenes agentes) e formalizando a divisão entre memória das coisas (memoria rerum) e memória das palavras (memoria verborum).
Colocam sobretudo a memória no grande sistema da retórica que ia dominar a cultura antiga, renascer na Idade Média (séculos XII-XIII), conhecer uma nova vida nos nossos dias com os semióticos e outros novos retóricos [cf. Yates, 1955]. A memória é a quinta operação da retórica: depois da inventio (encontrar o que dizer), a dispositio (colocar em ordem o que se encontrou), a elocutio (acrescentar o ornamento das palavras e das figuras), a acho (recitar o discurso como um ator, por gestos e pela dicção) e enfim a memoria (memoriae mandare 'recorrer à memória').
Barthes observa: "As três primeiras operações são as mais importantes... as duas últimas (actio e memoria) foram rapidamente sacrificadas, desde o momento em que a retórica não se relacionou apenas com os discursos falados (declamados) de advogados ou de homens políticos, ou de "conferencistas" (gênero epidítico), mas também, depois quase exclusivamente, com obras (escritas). Não há portanto nenhuma dúvida de que estas duas partes não apresentam nenhum interesse... a segunda porque postula um nível de estereótipos, uma intertextualidade fixa, transmitida mecanicamente" [1964-65, p. 197].
É necessário, finalmente, não esquecer que ao lado da emergência espetacular da memória no seio da retórica, quer dizer, de uma arte da palavra ligada à escrita, a memória coletiva prossegue o seu desenvolvimento através da evolução social e política do mundo antigo. Veyne [1973] sublinhou a confiscação da memória coletiva pelos imperadores romanos, nomeadamente pelo meio do monumento público e da inscrição, nesse delírio da memória epigráfica. Mas o senado romano, angariado e por vezes dizimado pelos imperadores, encontra uma arma contra a tirania imperial. É a damnatio memoriae, que faz desaparecer o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e das inscrições monumentais. Ao poder pela memória responde a destruição da memória.

3. A memória medieval no Ocidente

Enquanto que a memória social "popular" ou antes "folclórica" nos escapa quase inteiramente, a memória coletiva formada por diferentes estratos sociais sofre na Idade Média profundas transformações.

O essencial vem da difusão do cristianismo como religião e como ideologia dominante e do quase-monopólio que a Igreja conquista no domínio intelectual. Cristianização da memória e da mnemotecnia, repartição da memória coletiva entre uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de fraca penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, aparecimento enfim de tratados de memória (artes memoriae), tais são os traços mais característicos das metamorfoses da memória na Idade Média.
Se a memória antiga foi fortemente penetrada pela religião, o judaico-cristianismo acrescenta algo de diverso à relação entre memória e religião, entre o homem e Deus [cf. Meier, 1975]. Pôde-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como "religiões da recordação" [cf. Oexle, 1976, p. 80]. E isto em diferentes aspectos: porque atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental.
No Antigo Testamento é sobretudo o Deuteronômio que apela para o dever da recordação e da memória constituinte. Memória que é antes de reais nada um reconhecimento de Yahvêh, memória fundadora da identidade judaica: "Guarda-te de esqueceres Yahvêh teu Deus negligenciando as suas ordens, os seus costumes e as suas leis..." [8,11]; "Não esqueças então Yahvêh teu Deus que te fez sair do país do Egito, da casa da servidão..." [8, 14]; "Lembra-te de Yahvêh teu Deus: foi ele que te deu esta força, para agires com poder, guardando assim, como hoje, a aliança jurada aos teus pais. Certamente que se esqueces Yahvêh teu Deus, se segues outros deuses, se os serves e te prosternas diante deles, advirto-te hoje, perecerás" [8, 18-19].
Memória da cólera de Yahvéh: "Lembra-te. Não esqueças que iraste Yahvéh teu Deus, no deserto" [9, 7]; "Lembra-te o que Yahvéh teu Deus fez a Miryam, durante a fuga do Egito" (2, 9). Memória das injúrias dos inimigos: "Lembra-te do que te fez Amalec durante a fuga do Egito. Veio ao teu encontro no caminho e, por trás, depois de tu passares, atacou os fracos, quando estavas cansado e extenuado; ele não temeu a Deus. Quando Yahvéh teu Deus te tiver posto ao abrigo de todos os inimigos que te rodeiam, no país que Yahvéh teu Deus te dá em herança para o possuíres, apagarás a recordação de Amalec de debaixo dos céus. Não o esqueças!" [24, 17-19].
E em Isafas [4421] está o apelo à recordação e a promessa da memória entre Yahvéh e Israel: "Lembra-te disto, Jacob, e tu Israel, pois és meu servidor; eu te formei, tu és para mim um servidor, Israel, não te esquecerei".
Toda uma família de palavras na base das quais está a raiz zekar (cf. Zacarias em hebraico Zékar-Yãh: "Yahvéh recorda-se") faz do judeu um homem de tradição que a memória e a promessa mútuas ligam ao seu Deus [cf. Childs, 1962]. O povo hebreu é o povo da memória por excelência.
No Novo Testamento, a última Ceia funda a redenção na lembrança de Jesus: "Depois, pegando no pão, ele prestou graças, partiu-o e deu-o, dizendo: "Este é o meu corpo que vos é dado; fazei isto em minha memória" [Lucas, 22, 19]. João coloca a recordação de Jesus numa perspectiva escatológica: "Mas o Paracleto, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele nos ensinará tudo e nos lembrará tudo o que vos disse" [14, 26]. E Paulo prolonga esta perspectiva escatológica: "Com efeito, cada vez que comeres este pão e beberes este vinho, anunciareis a morte do Senhor até que ele venha" [Aos Corintios, 11, 26].
Assim, como com os Gregos (e Paulo está impregnado de helenismo), a memória pode resultar em escatologia, negar a experiência temporal e a história. Será uma das vias da memória cristã.
Mas no cotidiano o cristão é chamado a viver na memória das palavras de Jesus: "É preciso lembrar-nos das palavras do Senhor Jesus" [Atos dos Apóstolas, 20, 35]; "Lembra-te de Jesus Cristo, da Casa do David ressuscitado dentre os mortos" [Paulo, Carta segunda a Timóteo, 2, 8], memória que não é abolida na vida futura, no além, se acreditarmos em Lucas que faz Abraão dizer ao mau rico no Inferno: "Lembra-te que recebeste os teus bens durante a vida" [16, 25].
Mais historicamente, o ensino cristão apresenta-se como a memória de Jesus transmitida pela cadeia dos apóstolos e dos seus sucessores. Paulo escreve a Timóteo: "O que aprendeste comigo na presença de numerosos testemunhos, confia-o a homens seguros, capazes de, por seu turno, instruírem outros" [Carta segunda, 2, 2]. O ensino cristão é memória, o culto cristão é comemoração [cf. Dahl, 1948].
Agostinho deixará em herança ao cristianismo medieval um aprofundamento e uma adaptação cristã da teoria da retórica antiga sobre a memória. Nas suas Confissões, parte da concepção antiga dos lugares e das imagens de memória, mas dá-lhes uma extraordinária profundidade e fluidez psicológicas, referindo a "imensa sala da memória" (in aula ingenti memoriae), a sua "câmara vasta e infinita" (penetrale amplum et infinitum).
"Chego agora aos campos e às vastas zonas da memória, onde repousam os tesouros das inumeráveis imagens de toda a espécie de coisas introduzidas pelas percepções; onde estão também depositados todos os produtos do nosso pensamento, obtidos através da ampliação, redução ou qualquer outra alteração das percepções dos sentidos, e tudo aquilo que nos foi poupado e posto à parte ou que o esquecimento ainda não absorveu e sepultou. Quando estou lá dentro, evoco todas as imagens que quero. Algumas apresentam-se no mesmo instante, outras fazem-se desejar por mais tempo, quase que são extraídas dos esconderijos mais secretos. Algumas precipitam-se em vagas, e enquanto procuro e desejo outras, dançam à minha frente com ar de quem diz: "Não somos nós por acaso?", e afasto-as com a mão do espírito da face da recordação, até que aquela que procuro rompe da névoa e avança do segredo para o meu olhar; outras surgem dóceis, em grupos ordenados, à medida que as procuro, as primeiras retiram-se perante as segundas e, retirando-se, vão recolocar-se onde estarão, prontas a vir de novo, quando eu quiser. Tudo isto acontece quando conto qualquer coisa de memória" [citado em Yates, 1966, p. 44].
Yates escreveu que estas imagens cristãs da memória se harmonizaram com as grandes igrejas góticas nas quais talvez convenha ver um laço simbólico de memória. E onde Panofsky falou de gótico e de escolástico talvez se deva falar de arquitetura e de memória.
Mas Agostinho, avançando "nos campos e nos antros, nas cavernas inimagináveis da minha memória" [Confissões, X, 17.26], procura Deus no fundo da memória, mas não o encontra em nenhuma imagem nem em nenhum lugar [ibid., 25.36-26.37]. Com Agostinho a memória penetra profundamente no homem interior, no seio da dialética cristã do interior e do exterior de onde saíram o exame de consciência, a introspecção, senão a psicanálise.
Mas Agostinho lega também ao cristianismo medieval uma versão cristã da trilogia antiga dos três poderes da alma: memoria, intelligentia, providentia [cf. Cícero, De inventione, II, 53, 160]. No seu tratado De Trinitate, a tríade toma-se em memória, intellectus, voluntas, que são, no homem, as imagens da Trindade.
Se a memória cristã se manifesta essencialmente na comemoração de Jesus, anualmente na liturgia que o comemora do Advento ao Pentecostes, através dos momentos essenciais do Natal, da Quaresma, da Páscoa e da Ascensão, cotidianamente na celebração eucarística, a um nível mais "popular" cristalizou-se sobretudo nos santos e nos mortos.
Os mártires eram testemunhos. Depois da sua morte, cristalizava-se em tomo da sua recordação a memória dos cristãos. Aparecem nos libri memoriales onde as igrejas inscreviam aqueles de que se conservava lembrança e que eram objeto das suas orações. Assim foi no Liber memoriales de Salzburgo no século VIII e no de Newminster no século XI [cf. Oexle, 1976, p. 82].
Os seus túmulos constituíram o centro de igrejas e o seu lugar recebeu, para além dos nomes de confessio ou de martyrium, o, significativo, de memória [cf. Leclercq, 1933; Ward-Perkins, 1965].
Agostinho opõe de forma surpreendente o túmulo do apóstolo Pedro ao templo pagão de Rómulo, a glória da memoria Petri ao abandono do templum Romuli [Enarrationes in psalmos, 44, 23].
Saída do culto antigo dos mortos e da tradição judaica dos túmulos dos patriarcas, esta prática conheceu particular relevo na África, onde a palavra se tomou sinônimo de relíquia.
Por vezes até, a memória não comportava nem túmulo nem relíquias como na igreja dos Santos Apóstolos em Constantinopla.
Para além disso, os santos eram comemorados no dia da sua festa litúrgica (e os maiores podiam ter várias, como S. Pedro de quem Tiago de Voragine, na sua Legenda aurea, explica as três comemorações: a da cátedra de Pedro, e de S. Pedro acorrentado e a do seu martírio (que lembravam a sua elevação ao pontificado de Antioquia, as suas prisões e a sua morte) e os simples cristãos tomaram o hábito de, a par do dia do seu nascimento, costume herdado da Antiguidade, festejar o dia do seu santo [cf. Dürig, 1954].
A comemoração dos santos tinha em geral lugar no dia conhecido ou suposto do seu martírio ou da sua morte. A associação entre a morte e a memória adquire com efeito e rapidamente uma enorme difusão no cristianismo, que a desenvolveu na base do culto pagão dos antepassados e dos mortos.
Desenvolveu-se muito cedo na Igreja o costume das orações pelos mortos. Muito cedo também, como aliás também nas comunidades judaicas, as igrejas e as comunidades cristãs passaram a ter libri memoriales (chamados a partir do século XVII unicamente necrólogos ou obituários [cf. Huyghebaert, 1972]), nos quais estavam inscritas as pessoas, vivas e sobretudo mortas, sendo a maioria benfeitores da comunidade, de quem ela queria guardar memória e por quem rezava. Do mesmo modo, os dípticos em marfim que, no fim do império romano, os cônsules costumavam oferecer ao imperador quando entravam em funções, foram cristianizados e serviram a partir daí para a comemoração dos mortos. As fórmulas que invocam a memória desses homens inscritos nos dípticos ou nos libri memoriales dizem todas aproximadamente a mesma coisa: "Quorum quarumque recolimus memoriam- 'aqueles ou aquelas cuja memória lembramos'; "qui in libello memoriali... scripti memorantes- 'aqueles que estão inscritos no livro de memória para que se lembre'; "quorum nomina ad memorandum conscripsimus- 'aqueles de quem escrevemos os nomes para guardarmos na memória'.
No fim do século XI, a introdução do Liber vitae do mosteiro de S. Benedetto di Polirone declara, por exemplo: "O abade mandou fazer este livro que ficará sobre o altar para que todos os nomes dos nossos familiares que nele estão inscritos estejam sempre presentes aos olhos de Deus e para que a memória de todos seja conservada universalmente por todo o mosteiro, tanto na celebração das missas como em todas as outras boas obras" [citado em Oexle, 1976, p. 77].
Por vezes, os libri memoriales tratam do esquecimento daqueles que estavam destinados a ser lembrados. Uma oração do Liber memoriales de Reicherau diz: "Os nomes que me foi ordenado inscrever neste livro, mas que por negligência esqueci, recomendo-os a ele, Cristo, e à sua mãe e a toda potência celeste para que a sua memória seja celebrada aqui em baixo e na beatitude da vida eterna" [citado ibid., p. 85].
Ao lado do esquecimento havia por vezes, para os indignos, a irradiação dos livros de memória. A excomunhão, nomeadamente, arrastava essa damnatio memoriae cristã. De um excomungado, o sínodo de Reisbach em 798 declara: "Que depois da sua morte não seja nada escrito em sua memória"; e o sínodo de Elne, em 1027, decreta a propósito de outros condenados: "E que os seus nomes não estejam mais no altar sagrado entre os dos fiéis mortos".
Muito cedo os nomes dos mortos memoráveis foram introduzidos no Memento do cânon da missa. No século IX, sob o impulso de Cluny, uma festa anual foi instituída em memória de todos os fiéis mortos, a comemoração dos defuntos, a 2 de novembro. O nascimento, no fim do século XII, de um terceiro lugar do Além, entre Inferno e Paraíso, o Purgatório, de onde se podia, através de missas, de orações, de esmolas, fazer sair mais ou menos rapidamente os mortos pelos quais as pessoas se interessavam, intensificou o esforço dos vivos em favor da memória dos mortos. Em contrapartida, na linguagem corrente das fórmulas estereotipadas, a memória entra na definição dos mortos lamentados, que são "de boa", "de bela memória" (bonae memoriae, egregiae memoriae).
Com o santo, a devoção cristalizava-se em tomo do milagre. Os ex-voto, que prometiam ou dispensavam reconhecimento em vista de um milagre ou depois da sua realização, conhecidos do mundo antigo, estiveram em grande voga na Idade Média e conservavam a memória dos milagres (cf. Bautier, 1975). Em compensação, entre o século IV e o XI há uma diminuição das inscrições funerárias [cf. Ariès, 1977, pp. 201 ss.].
Todavia, a memória tinha um papel considerável no mundo social, no mundo cultural e no mundo escolástico e, bem entendido, nas formas elementares da historiografia.
A Idade Média venerava os velhos, sobretudo porque via neles homens-memória, prestigiosos e úteis.
É interessante, entre outros, um documento que Marc Bloch publicou [1911, ed. 1963, I, p. 478]. Por volta de 1250, enquanto São Luís estava na cruzada, os canônicos de NotreDame de Paris quiseram lançar um imposto sobre os seus servos do domínio de Orly. Estes recusaram-se a pagá-lo e a regente Blanche de Castille foi chamada a servir de árbitro na controvérsia. Os dois partidos apresentaram como testemunhas homens idosos pretendendo que em memória de homem os servos de Orly eram ou não (tal dependia do seu partido) talháveis: "Ita usitatum est a tempore a quo non exstat memoria" 'assim foi desde um tempo imemorial, ausente da memória'.
Guenée, procurando elucidar o sentido da expressão medieval "os tempos modernos" (tempora moderna), depois de ter estudado atentamente a "memória" do conde de Anjou, Foulque IV le Rechin, que escreveu uma história da casa em 1096, do canônico de Cambrai Hambert de Waltrelos, que escreveu uma crônica em 1152, e do dominicano Etienne de Bourbon, autor de uma recolha de exempla entre 1250 e 1260, chega às seguintes conclusões: "Na Idade Média, certos historiadores definem os tempos modernos como tempo da memória; muitos sabem que uma memória fiel pode durar aproximadamente cem anos; a modernidade, os tempos modernos são portanto para cada um deles o século em que vivem ou acabam de viver os últimos anos [1976-77, p. 35].
De resto, um inglês, Gautier Map, escreve no final do século XII: "Isto começou na nossa época. Entendo por "nossa época" o período que é para nós moderno, quer dizer, a extensão destes cem anos de que vemos agora o fim e de que todos os acontecimentos notáveis ainda estão frescos e presentes nas nossas memórias, primeiro porque alguns centenários ainda sobrevivem e também porque muitos filhos têm relatos muito seguros do que não viram dos seus pais e dos seus avós" [citado, ibid.].
Todavia, nestes tempos, o escrito desenvolve-se a par do oral e, pelo menos no grupo dos clérigos e literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória escrita, intensificando-se o recurso ao escrito como suporte da memória.
Os senhores reúnem nos seus cartularii as cartas a produzir em apoio dos seus direitos e que constituem, no domínio da terra, a memória feudal, cuja outra metade, do lado dos homens, é constituída pelas genealogias. O exórdio da carta concedida em 1174 por Guy, conde de Nevers, aos habitantes de Tonnerre, declara: "O uso das letras foi descoberto e inventado para conservar a memória das coisas. Aquilo que queremos reter e aprender de cor fazemos redigir por escrito a fim de que o que se possa reter perpetuamente na sua memória frágil e falível seja conservado por escrito e por meio de letras que duram sempre".
Durante muito tempo os reis apenas tiveram pobres arquivos ambulantes. Filipe-Augusto deixou os seus em 1194 na derrota de Fréteval, face a Ricardo Coração-de-Leão. Os arquivos da chancelaria régia começaram a constituir-se cerca de 1200. No século XIII desenvolvem-se na França, por exemplo, os arquivos da Chambre des Comptes (os atos reais de interesse financeiro são reunidos em registros com o nome significativo de memoriais) e os do Parlamento. A partir do século XIII na Itália, e noutros países do século XIII e XIV, proliferam os arquivos notariais [cf. Favier, 1958, pp. 13-18]. Com a expansão das cidades, constituem-se os arquivos urbanos, zelosamente guardados pelos corpos municipais. A memória urbana, para as instituições nascentes e ameaçadas, torna-se verdadeira identidade coletiva, comunitária. A este respeito Gênova é pioneira; constitui arquivos desde 1127 e conserva ainda hoje registros notariais desde meados do século XII. O século XIV vê os primeiros . inventários de arquivos (Carlos V na França, o papa Urbano V para os arquivos pontifícios em 1366, a monarquia inglesa em 1381). Em 1356 um tratado internacional (a paz de Paris entre o Delfim e a Savóia) ocupa-se pela primeira vez do destino dos arquivos dos países contratantes [cf. Bautier, 1961, pp. 1126-28].
Durante muito tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um dos elementos constitutivos da literatura medieval. Tal é particularmente verdadeiro para os séculos XI e XII e para a canção de gesta que não só faz apelo a processos de memorização por parte do trovador (troubadour) e do jogral, como por parte dos ouvintes, mas que se integra na memória coletiva como bem o viu Paul Zumthor a propósito do "herói" épico: "O herói não existe senão no canto, mas não deixa de existir também na memória coletiva, na qual participam os homens, poeta e público' [ 1972, p. 324].
A memória escolar tem unia função semelhante. Riché afirma, sobre a Alta Idade Média: "O aluno deve registrar na sua memória. Nunca será demais insistir nesta atitude intelectual que caracteriza e caracterizará por muito tempo ainda, não só o mundo ocidental, mas o Oriente. Tal como o jovem muçulmano ou o jovem judeu, o estudante cristão deve saber de cor os textos sagrados. Primeiro, o saltério, que aprende mais ou menos depressa – alguns investem nisso vários anos –, em seguida, se é monge, a regra beneditina [Coutumes de Murbach, IR, 80]. Nesta época, saber de cor é saber. Os mestres, retomando os conselhos de Quintiliano [Inst. orat., XI, 2] e de Marziano Capella [De nuptiis, capa V], desejam que os seus alunos se exercitem em fixar tudo o que lêem [Alcuíno, De Rhetorica, ed. Halm, pp. 545-48]. Imaginam vários métodos mnemotécnicos, compondo poemas alfabéticos (versus memoriales) que permitem reter facilmente gramática, cômputo e história" [1979, p. 218]. Neste mundo que passa da oralidade à escrita multiplicam-se, conforme as teorias de Goody, os glossários, os léxicos, as listas de cidades, de montanhas, de rios, de oceanos, que é necessário aprender de cor como o indica, no século IX, Rábano Mauro [De universo libri viginti duo, em Migne, Patrologia latina, CXI, col. 335]
No sistema escolástico das universidades, depois do final do século XII, o recurso à memória continua freqüentemente a fundar-se mais na oralidade que na escrita. Apesar do aumento do número de manuscritos escolásticos, a memorização dos cursos magistrais e dos exercícios orais (disputas, quodlibet, etc.) continua a ser o núcleo do trabalho dos estudantes.
No entanto, as teorias da memória desenvolvem-se na retórica e na teologia.
No De nuptiis Mercurii et Philologiae do século V, o retórico pagão Marziano Capella retoma, em termos enfáticos, a distinção clássica entre loci e imagines, entre uma memória "para as coisas" e uma memória "para as palavras". No tratado de Alcuíno, De rhetorica, vê-se Carlos Magno informar-se acerca das cinco partes da retórica até chegar à memória: CARLOS MAGNO: E agora, o que te ocorre dizer sobre a Memória, que considero a parte mais nobre da retórica?
ALCUÍNO: Que mais posso dizer senão repetir as palavras de Marco Túlio? A memória é a arca de todas as coisas e se ela não se tomou a guardiã do que se pensou sobre coisas e palavras, sabemos que todos os outros dotes do orador, por mais excelentes que possam ser, se reduzem a nada.
CARLOS MAGNO: Não há regras que nos ensinem como pode ser adquirida e aumentada?
ALCUÍNO: Não temos outras regras a seu respeito, além do exercício de aprender de cor, da prática da escrita, da aplicação ao estudo e do evitar a embriaguez [citado em Yates, 1966, p. 50]
Alcuíno ignorava visivelmente a Rhetorica ad Herennium que, a partir do século XII, em que se multiplicam os manuscritos, é atribuída a Cícero (cujo De oratore tal como o Institutio oratória de Quintiliano são praticamente ignorados).
A partir do fim do século XII, a retórica clássica toma a forma de Ars dictaminis, técnica de arte epistolar de uso administrativo de que Bolonha se torna o grande centro. É aí que é escrito em 1235 o segundo tratado deste gênero, composto por Boncompagno da Signa, a Rhetorica novissima, onde a memória em geral é assim definida: "O que é a memória. A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual reevocamos as coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com as passadas" [citado ibid., p. 255]. Depois disto, Boncompagno lembra a distinção fundamental entre memória natural e memória artificial. Para esta última, Boncompagno fornece uma longa lista de "sinais de memória" tirados da Bíblia, como, por exemplo, o canto do galo que é para São,Pedro um "sinal mnemônico".
Boncompagno integra na ciência da memória os sistemas essenciais da moral cristã da Idade Média. As virtudes e os vícios de que ele faz signacula, "notas mnemônicas" [ibid., p. 55] e sobretudo talvez, para além da memória artificial, mas como "exercício fundamental da memória", a lembrança do Paraíso e do Inferno ou antes a "memória do Paraíso" e a "memória das regiões infernais", num momento em que a distinção entre Purgatório e Inferno ainda não está completamente traçada. Inovação importante que, depois da Divina Comédia, inspirará as numerosas representações do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, que devem ser vistas na maioria das vezes como "lugares de memória", cujas divisórias lembram as virtudes e os vícios. É "com os olhos da memória", afirma Yates [ibid., p. 85], que é necessário ver os afrescos de Giotto na capela dos Scrovegni de Pádua, os do "Buongoverno" e do "Malgoverno" de Ambrogio Lorenzetti no Palácio comunal de Siena. A lembrança do Paraíso, do Purgatório e do Inferno encontrará a sua expressão suprema nas Congestorium artificiosae memoriae do dominicano alemão Johannes Romberch, editado pela primeira vez em 1520 (cuja edição mais importante, com as suas gravuras, foi a de Venezia em 1533), que conhece todas as fontes antigas da arte da memória e se apóia sobretudo em Tomás de Aquino. Romberch, depois de ter levado à perfeição o sistema dos lugares e das imagens, esboça um sistema de memória enciclopédica em que o fundo medieval se desenvolve no espírito da Renascença. Entretanto, a teologia tinha transformado a tradição antiga da memória, incluída na retórica.
Na linha de Santo Agostinho, de Santo Anselmo (+ 1109) e do cisterciense Ailred de Rievaux (+ 1167), retoma-se a tríade intellectus, voluntas, memoria; erigida por Santo Anselmo em três "dignidades" (digndades) da alma; mas no Monologion a tríade toma-se memoria, intelligentia, amor. Pode haver memória e inteligência sem amor, mas não pode haver amor sem memória e inteligência. Também Ailred de Rievaux, no seu De anima se preocupa sobretudo em situar a memória entre as faculdades da alma.
No século XIII os dois gigantes dominicanos, Alberto Magno e Tomás de Aquino, atribuem um lugar importante à memória. À retórica antiga, a Agostinho, acrescentam sobretudo Aristóteles e Alvicena. Alberto trata a memória no De bono, no De anima e no seu comentário sobre o Della memoria et della reminiscentia de Aristóteles. Parte da distinção aristotélica entre memória e reminiscência. Está na linha do cristianismo do "homem interior", incluindo a intenção (intentio) na imagem de memória, pressente o papel da memória no imaginário, e concedendo que a fábula, o maravilhoso, as emoções que conduzem à metáfora (metaphorica) ajudam a memória, mas, como a memória, é um auxiliar indispensável da prudência, isto é, da sageza (imaginada como uma mulher de três olhos que pode ver as coisas passadas, presentes e futuras). Alberto insiste na importância da aprendizagem da memória, nas técnicas mnemônicas. Finalmente, Alberto, como bom "naturalista", põe a memória em relação com os temperamentos. Para ele, o temperamento mais favorável a uma boa memória é a "a melancolia secoquente, a melancolia intelectual" [citado ibid., p. 64]. Alberto Magno, precursor da "melancolia" do Renascimento, na qual se deveria ver um pensamento e uma sensibilidade da recordação? O "melancólico' Lourenzo de Médicis suspira: "E se não fosse o relembrar ainda / consolador dos aumentos atormentados, / A morte teria posto fim a tantas penas".
Fora de qualquer outra disposição, Tomás de Aquino estava particularmente apto a tratar da memória: a sua memória natural era, parece, fenomenal, e a sua memória artificial exercera-se pelo ensino de Alberto Magno em Colônia.
Tomás de Aquino, como Alberto o Magno, trata na Summa Theologise da memória artificial a propósito da virtude da prudência [2a2ae,, q. 68: De partibus Prudentiae; q. 69: De singulis prudentiae partibus, art. I: Utrum memoria sit pars prudentiae] e, como Alberto Magno, escreveu um comentário sobre o De memoria et reminiscentia de Aristóteles. A partir da doutrina clássica dos lugares e das imagens formulou quatro regras mnemônicas:
1) É necessário encontrar "simulacros adequados das coisas que se deseja recordar" e "é necessário, segundo este método, inventar simulacros e imagens porque as intenções simples e espirituais facilmente se evolam da alma, a menos que estejam, por assim dizer, ligadas a qualquer símbolo corpóreo, porque o conhecimento humano é mais forte em relação aos sensibilia; por esta razão, o poder mnemônico reside na parte sensitiva da alma" [citado ibid., p. 69]. A memória está ligada ao corpo.
2) É necessário, em seguida, dispor "numa ordem calculada as coisas que se deseja recordar de modo que, de um ponto recordado, se torne fácil a passagem ao ponto que lhe sucede". A memória é razão.
3) É necessário "meditar com freqüência no que se deseja recordar". É por isso que Aristóles diz que "a meditação preserva a memória" pois "o hábito é como natureza" [ibid.].
A importância destas regras vem da influência que elas exerceram, durante séculos, sobretudo do século XIV ao XVII, nos teóricos da memória, nos teólogos, nos pedagogos e nos artistas. Yates pensa que os afrescos da segunda metade do século XIV, do Cappellone degli Spagnoli, no convento dominicano de Santa Maria Novella em Florença, são a ilustração, pela utilização de "símbolos corpóreos" para designar artes liberais e disciplinas teológico-filosóficas, das teorias tomistas sobre a memória.
O dominicano Giovanni da San Gimignano, na Summa de exemplis ac similitudinibus rerum, no início do século XIV, transcreve em fórmulas breves as regras dos tomistas: "Há quatro coisas que ajudam o homem a bem recordar. A primeira é que se disponha as coisas que se deseja recordar numa certa ordem. A segunda é que se adira a elas com paixão. A terceira consiste em as reportar a similitudes insólitas. A quarta consiste em as chamar com freqüentes meditações" [livro VI, cap. XIII].
Pouco depois, um outro dominicano do convento de Pisa, Bartolomeo da San Concordio (1262-1347), retomou as regras tomistas da memória nos seus Armnaestramenti degli antichi, a primeira obra a tratar da arte da memória em língua vulgar, em italiano, pois que era destinada aos laicos.
Entre as numerosas artes memoriae da Baixa Idade Média, a sua época de florescimento (como para os artes moriendi), pode-se citar a Phoenix sive artificiosa memoria (1491) de Pietro da Ravenna, que foi, parece, o mais difundido destes tratados. Conheceu diversas edições no século XVI e foi traduzido em diversas línguas, por exemplo, por Robert Copland, em Londres, aproximadamente em 1548, sob o título The Art of Memory that is Otherwise Called the Phoenix.
Erasmo, no De ratione studii (1512), não é favorável à ciência mnemônica: "Se bem que não negue que a memória pode ser ajudada por simulacros (lugares) e imagens (imagens), a melhor memória funda-se em três coisas da máxima importância: estudo, ordem e cuidado" [citado ibid., p. 466].
Erasmo considera no fundo a arte da memória como um exemplo da barbárie intelectual medieval e escolástica, e se põe particularmente em guarda contra as práticas mágicas da memória.
Melanchton nas suas Rhetorica elementa (1534) interditará aos estudantes as técnicas, os "truques" mnemônicos. Para ele a memória confunde-se com a aprendizagem normal do saber.

Não podemos deixar a Idade Média sem evocar um teórico, também muito original neste domínio da memória: Raimundo Lúlio (+ 1316). Depois de ter estudado a memória em vários tratados, Lúlio acaba por compor três tratados: De memoria, De intellectu e De voluntate (portanto a partir da Trindade agostiniana), sem contar com o Liber ad memoriam conf rmandam. Diferentíssimo do ars memoriae dominicano, o ars memoriae de Lúlio é "um método de pesquisa e um método de pesquisa lógica" [ibid., p. 170] que é esclarecido pelo Liber septem planetarum do mesmo Lúlio. Os segredos do ars memorandi estão escondidos nos sete planetas. A interpretação neoplatônica do lullismo na Florença do Quattrocento (Pico della Mirandola) leva a ver na ars memoriae uma doutrina cabalística, astrológica e mágica, que iria ter, assim, grande influência na Renascença.


4. Os progressos da memória escrita e figurada da Renascença aos nossos dias
A imprensa revoluciona, embora lentamente, a memória ocidental. Revoluciona-a ainda mais lentamente na China onde, apesar de a imprensa ter sido descoberta no século IX da nossa era, se ignoraram os caracteres móveis, a tipografia; até à introdução, no século XIX, dos processos mecânicos ocidentais, a China limitou-se à xilografia, impressão de pranchas gravadas em relevo. A imprensa não pôde agir de forma massiva na China, mas os seus efeitos sobre a memória, pelo menos entre as camadas cultas, foi importante, pois imprimiram-se sobretudo tratados científicos e técnicos que aceleraram e alargaram a memorização do saber.
As coisas passaram-se de forma diferente no Ocidente. Leroi-Gourhan caracterizou bem esta revolução da memória pela imprensa: "Até o aparecimento da imprensa... dificilmente se distingue entre a transmissão oral e a transmissão escrita. A massa do conhecido está mergulhada nas práticas orais e nas técnicas; a área culminante do saber, com um quadro imutável desde a Antiguidade, é fixada no manuscrito para ser aprendida de cor... Com o impresso... não só o leitor é colocado em presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente, mas é freqüentemente colocado em situação de explorar textos novos. Assiste-se então à exteriorização progressiva da memória individual; é do exterior que se faz o trabalho de orientação que está escrito no escrito" [196465, pp. 69-70].
É durante este período que separa o fim da idade Média e os inícios da imprensa e o começo do século XVIII que Yates situou a longa agonia da arte da memória.
Ao século XVI "parece que a arte da memória se afasta dos grandes centros nevrálgicos da tradição européia para se tornar marginal" [Yates, 1966, p. 114].
Se bem que os opúsculos Como melhorar a sua memória não tenham cessado de ser editados (o que continuou até os nossos dias), a teoria clássica da memória formada na Antiguidade greco-romana é modificada pela escolástica, que tivera um lugar central na vida escolar, literária (que se pense novamente na Divina Comédia) e artística da Idade Média, desaparecendo quase completamente no movimento humanista. Mas a corrente hermética de que Lúlio foi um dos fundadores e que Marsilio Ficino e Pico della Mirandola impulsionaram definitivamente, desenvolveu-se consideravelmente até o início do século XVII.
Ela inspirou, em primeiro lugar, um personagem curioso, célebre no seu tempo, na Itália e na França, e depois esquecido, Giulio Camillo Delminio, "o divino Camillo" [cf. ibid., pp. 121-59]. Este veneziano, nascido cerca' de 1480 e falecido em Milão em 1544, construiu em Veneza, e depois em Paris, um teatro em madeira de que não se possui nenhuma descrição mas que se,pode supor assemelhar-se ao teatro ideal descrito por Giulio Camillo na Idea del teatro publicada depois de sua morte, em 1550, em Veneza e Florença. Construído com base nos princípios da ciência mnemônica clássica, este teatro é de fato uma representação do universo que se desenvolve a partir das causas primeiras, passando pelas diversas fases da criação. As suas bases são os planetas, os signos do zodíaco e os supostos tratados de Hermes Trismegisto: o Asclepius na tradução latina conhecida na Idade Média e o Corpus Hermeticum na versão latina de Marsilio Ficino. O Teatro de Camillo deve ser situado na Renascença veneziana do primeiro Cinquecento e, por sua vez, a arte di memoria deve ser recolocada nessa Renascença, nomeadamente na sua arquitetura. Se, influenciado por Vitrúvio, Palladio (nomeadamente no Teatro Olímpico de Vicenza), provavelmente influenciado por Camillo, não foi até o extremo da arquitetura teatral fundada numa teoria hermética da memória, foi talvez na Inglaterra que estas teorias conheceram o seu maior desenvolvimento. De 1617 a 1619 foram publicados em Oppenheim na Alemanha os dois volumes (tomo I, O Macrocosmo, tomo II, O Microcosmo) do Utriusque cosmi maioris scilicet et minoras metaphysica, physica arque technica historia de Robert Fludd, onde se encontra a teoria hermética do teatro da memória, transformado desta vez de retangular em circular (ars rotunda em vez de ars quadrata), e do qual Yates pensa que encarnou, provavelmente no Globe Theater de Londres, o teatro de Shakespeare [ibid., pp. 317-41].
Giordano Bruno (1548-1600) foi o maior teórico das teorias ocultistas da memória que tiveram um papel decisivo nas perseguições, na condenação eclesiástica e na execução do célebre dominicano. Poder-se-á ler no belo livro de Yates os detalhes de teorias que se exprimem nomeadamente nos De umris idearum (1582), no Cantus Circaeus (1582), no Ars reminiscendi, explicatio triginta sigUlorum ad omnium scientiarum et artium inventionem, dispositionem et memoriam (1583), na Lampas triginta statuarwn (1587), no De imaginum, signorum et idearum compositione (1591). Basta dizer que, para Bruno, as rodas da memória funcionavam por magia e que "tal memória seria a memória de um homem divino, de um mago provido de poderes divinos, graças a uma imaginação imbricada na ação dos poderes cósmicos. E tal tentativa devia apoiar-se no pressuposto hermético de que a mens do homem é divina, ligada na origem aos governantes das estrelas, capaz de refletir e dominar o universo" [Yates, 1966, p. 207].
Finalmente, em Leão, no ano de 1617, um certo Johannes Paepp revelava, no seu Schenkelius detectus: seu memoria artificialis hactenus occultata, que o seu mestre Lambert Schenkel (1547-c.1603), que tinha publicado dois tratados sobre a memória (De memoria, 1593, e o Gazophylacium, 1610), aparentemente fiéis às teorias antigas e escolásticas da memória, era na realidade um adepto oculto do hermetismo. Foi o canto do cisne do hermetismo mnemônico. O método científico que o século XVIII iria elaborar devia destruir este segundo ramo da ars memoriae medieval.
Já o protestante Pierre de Ia Ramée, nascido em 1515 e vítima em 1572 da matança de S. Bartolomeu, nos seus Scholae in liberales artes, pedira a substituição das antigas técnicas de memorização por novas, fundadas na "ordem dialética", num "método". Reivindicação da inteligência contra a memória que até os nossos dias não deixou de inspirar uma corrente "antimemória", que reclama, por exemplo, uma dispersão ou diminuição das matérias ditas "de memória" tios programas escolares, enquanto que os psicólogos da criança, como Jean Piaget, demonstraram, como se viu, que memória e inteligência, longe de se combater, se apóiam mutuamente.
Em todo o caso, Francis Bacon escreve no Novum Organum, em 1620: "Também eu elaborei e pus em prática um método que, na realidade, não é um método legítimo, mas um método de impostura: consiste em comunicar o conhecimento de tal forma que quem não tenha cultura pode rapidamente pôr-se em condições de poder mostrar que a tem. Foi este o trabalho de Raimundo Lúlio..." [citado ibid., p. 348].
Na mesma época, Descartes nas Cogitationes privatae (1619-21) polemiza com a "inútil inépcia de Schenkel (no livro De arte memoriae)" e propõe dois "métodos" lógicos para dominar a imaginação: "Atua-se através da redução das coisas às causas. E como todas podem ser reduzidas a uma, é evidente que não é preciso memória para se reter toda a ciência" [citado ibid., p. 347].
Talvez só Leibniz tenha tentado reconciliar nos seus manuscritos ainda inéditos, conservados em Hannover [cf. ibid., p. 353], a arte di memoria de Lúlio, qualificada por ele de "combinatória", com a ciência moderna. As rodas da memória de Lúlio, retomadas por Giordano Bruno, são movidas por sinais, notas, caracteres, selos. Basta, parece pensar Leibniz, fazer das notas a linguagem matemática universal: matematização da memória, ainda hoje impressionante, entre o sistema lulliano medieval e a cibernética moderna.
Sobre este período da "memória em expansão", como designou Leroi-Gourhan, verifiquemos o testemunho do vocabulário, considerando na língua francesa os dois campos semânticos saídos da mneme e da memoria.
A Idade Média criou a palavra central mémoire, aparecida desde os primeiros monumentos da língua, no século XI. No século XIII é acrescentada mémorial (que diz respeito, como vimos, a contas financeiras), e em 1320, mémoire, no masculino, designando um "mémoire" um dossiê administrativo. A memória toma-se burocrática ao serviço do centralismo monárquico que então surge. O século XV vê o aparecimento de mémorable nesta época de apogeu das artes memoriae e de renovação da literatura antiga – memória tradicionalista. No século XVI, em 1552, aparecem os mémoires escritos por um personagem, em geral de qualidade; é o século em que a história nasce e o indivíduo se afirma. O século XVIII cria, em 1726, o termo mémorialiste e, em 1777, memorandum derivado do latim através do inglês. Memória jornalística e diplomática: é a entrada em cena da opinião pública, nacional e internacional, que constrói também a sua própria memória. Na primeira metade do século XIX, presencia-se um conjunto massivo de criações verbais: amnésie, introduzido em 1803 pela ciência médica, mnémonique (1800), mnémotechnie (1836) e mémorisation, criados em 1847 pelos pedagogos suíços, conjunto de termos que testemunha os progressos do ensino e da pedagogia; finalmente, aidemémoire que, em 1853, mostra que a vida cotidiana foi penetrada pela necessidade de memória. Finalmente, em 1907 o pedante mémoriser parece resumir a influência adquirida pela memória em expansão.
No entanto, ó século XVIII, conforme assinalou Leroi-Gourhan, joga um papel decisivo neste alargamento da memória coletiva: "Os dicionários atingem os seus limites nas enciclopédias de toda a espécie que são publicadas, para o uso das fábricas ou dos artesãos, como dos eruditos puros. O primeiro verdadeiro grande salto da literatura técnica situa-se na segunda metade do século XVIII... O dicionário constitui uma forma muito evoluída de memória exterior, mas em que o pensamento se encontra fragmentado até o infinito; a Grande Enciclopédie de 1751 constitui uma série de pequenos manuais reunidos no dicionário... a enciclopédia é uma memória alfabética parcelar na qual cada engrenagem isolada contém uma parte animada da memória total. Há entre o autômato de Vaucanson e a Enciclopédie, que lhe é contemporânea, a mesma relação que há entre a máquina eletrônica e o integrador dotado de memórias dos nossos dias" [964-65, pp. 70-71].

A memória até então acumulada vai explodir na Revolução de 1789: não terá sido ela o seu grande detonador?

Enquanto que os vivos podem dispor de uma memória técnica, científica e intelectual cada vez mais rica, a memória parece afastar-se dos mortos. Do final do século XVII até o fim do século XVIII, assim como na França de Philippe Ariès e de Michel Voyelle, a comemoração dos mortos entra em declínio. Os túmulos, incluindo os dos reis, tornam-se muito simples. As sepulturas são abandonadas à natureza e os cemitérios desertos e mal cuidados. O francês Pierre Muret nas suas Cérémonies funèbres de toutes les nations [1675] acha particularmente chocante o esquecimento dos mortos na Inglaterra e o atribui ao protestantismo: "Antigamente lembrava-se, em cada ano, a memória dos defuntos. Hoje não se fala mais deles, pois que isso poderia parecer papismo". Michel Voyelle [1974] julga descobrir que se quer, na Idade das Luzes, "eliminar a morte".
Imediatamente em seguida à Revolução Francesa, assiste-se a um retorno da memória dos mortos na França, como nos outros países da Europa. A grande época dos cemitérios começa, com novos tipos de monumentos, inscrições funerárias e rito da visita ao cemitério. O túmulo separado da igreja voltou a ser centro de lembrança. O romantismo acentua a atração do cemitério ligado à memória.
O século XIX vê, não mais tanto na ordem do saber como o século XVIII, mas na ordem dos sentimentos e também, diga-se em abono da verdade, da educação, uma explosão do espírito comemorativo.
Foi a Revolução Francesa a dar o exemplo? Mona Ozouf descreveu bem esta utilização da festa revolucionária ao serviço da memória. "Comemorar" faz parte do programa revolucionário: "Todos os que fazem calendários de festas concordam com a necessidade de alimentar através da festa a recordação da revolução" [1976, p. 199].
No final do seu título I, a Constituição de 1791 declara: "Serão estabelecidas festas nacionais para conservar a recordação da Revolução Francesa".
Mas cedo aparece a manipulação da memória. Depois do 9 de Termidor se é sensível aos massacres e às exceções do Terror, decidindo-se subtrair à memória coletiva "a multiplicidade das vítimas" e "nas festas comemorativas, a censura irá disputá-la com a memória" [ibid., p. 202]. É necessário, aliás, escolher. Apenas três jornadas revolucionárias parecem aos termidoreanos dignas de serem comemoradas: o 14 de julho, o 1º Vindimário, dia do ano republicano que não foi manchado por nenhuma gota de sangue e, com mais hesitação, o 10 de agosto, data da queda da monarquia. Em contrapartida, a comemoração do 21 de janeiro, dia da execução de Luís XVI, não terá êxito: é a "comemoração impossível".
O romantismo reencontra, de um modo mais literário que dogmático, a sedução da memória. Na tradução do tratado de Vico, De antiquíssima Italorum sapientia (17 10), Michelet pôde ler este parágrafo Memoria et phantasia: "Os Latinos designam a memória por memoria quando ela reúne as percepções dos sentidos, e por reminiscentia quando os restitui. Mas designavam da mesma forma a faculdade pela qual formamos imagens, a que os Gregos chamavam phantasia, e nós imaginativa, e os Latinos meemorare... Os Gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da memória" [1835, ed. 1971, I, pp. 410-11]. Ele encontra aí a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia.
Contudo, a laicização das festas e do calendário facilita em muitos países a multiplicação das comemorações. Na França, a memória da Revolução deixa-se reduzir à celebração do 14 de julho, cujas vicissitudes Rosemonde Sanson [1976] narrou. Suprimida por Napoleão, a festa é restabelecida, por proposta de Benjamim Raspail, no 6 de julho de 1880. O relator da proposta de lei declarara: "A organização de uma série de festas nacionais, lembrando ao povo recordações que se ligam à instituição política existente, é uma necessidade reconhecida e posta em prática por todos os governos". No final de 1872, Gambetta escreveu na "La République Française" de 15 de julho: "Uma nação livre tem necessidade de festas nacionais".
Nos Estados Unidos da América, em seguida à Guerra de Secessão, os estados do norte estabelecem um dia comemorativo, festejando a partir de 30 de maio de 1868. Em 1882, deu-se a esse dia o nome de "Memorial Day".
Se os revolucionários querem festas comemorando a revolução, a maré da comemoração é sobretudo um apanágio dos conservadores e ainda mais dos nacionalistas, para quem a memória é um objetivo e um instrumento de governo. Ao 14 de julho republicano a França católica e nacionalista acrescenta a celebração de Joana d'Arc. A comemoração do passado atinge o auge na Alemanha nazista e na Itália fascista.
A comemoração apropria-se de novos instrumentos de suporte: moedas, medalhas, selos de correio multiplicam-se. A partir de meados do século XIX, aproximadamente, uma nova vaga de estatuária, uma nova civilização da inscrição (monumentos, placas de paredes, placas comemorativas nas casas de mortos ilustres) submerge as nações européias. Grande domínio em que a política, a sensibilidade e o folclore se misturam e que espera os seus historiadores. A França do século XIX encontra em Maurice Agulhon, autor de estudos sobre a estatuomania, o seu historiador das imagens e dos símbolos republicanos. O desenvolvimento do turismo dá um impulso notável ao comércio de souvenirs.
Ao mesmo tempo, o movimento científico, destinado a fornecer à memória coletiva das nações os monumentos de lembrança, acelera-se.
Na França a Revolução cria os Arquivos nacionais (decreto de 7 de setembro de 1790). O decreto de 25 de junho de 1794, que ordena a publicidade dos arquivos, abre uma nova fase, a da pública disponibilidade dos documentos da memória nacional.
O século XVIII criara os depósitos centrais de arquivo (a casa de Savóia em Turim nos primeiros anos do século; Pedro, o Grande, em 1720 em São Petersburgo; Maria-Teresa em Viena em 1749; a Polônia em Varsóvia em 1765; Veneza em 1770; Florença em 1778, etc.).
Depois da França, a Inglaterra organiza em 1838 o "Public Record Office" em Londres. O papa Leão XIII abre ao público, em 1881, o Arquivo secreto do Vaticano, criado em 1611. São criadas instituições especializadas, com o fim de formarem especialistas do estudo desses fundos: a "École des Chartes" em Paris em 1821 (reorganizada em 1829); o "Institur für Osterreichische Geschichtsforschung", fundado em Viena em 1854 por obra de Sickel; a "Scuola di Paleografia e Diplomatica", instituída em Florença por Bonaini em 1857.
O mesmo aconteceu com os museus: depois de tímidas tentativas de abertura ao público no século XVIII (o Louvre entre 1750 e 1773, o Museu público de Cassel criado em 1779 pelo landgrave da Assia) e da instalação de grandes coleções em edifícios especiais (o Ermitage em São Petersburgo com Catarina II em 1764, o Museu Clementino do Vaticano em 1773, o Prado em Madri em 1785), começou finalmente a era dos museus públicos e nacionais. A Grande Galeria do Louvre foi inaugurada em 10 de agosto de 1793; a Convenção criou um Museu técnico com o nome significativo de Conservatoire des Arts et des Métiers; Luís-Filipe fundou em 1833 o Museu de Versailles consagrado a todas as glórias da França. A memória nacional francesa orienta-se para a Idade Média com a instalação da coleção Du Sommerard no Museu de Cluny, para a Pré-história com o Museu de Saint-Germain, criado por Napoleão III em 1862.
Os alemães criaram o Museu das Antiguidades nacionais de Berlim (1830) e o Museu germânico de Nuremberg (1852). Na Itália, a Casa de Savóia, ao mesmo tempo que se realizava a unidade nacional, cria em 1859 o Museu Nacional do Bargello em Florença.
A memória coletiva, nos países escandinavos, acolhe a memória "popular", pois que se abrem museus de folclore na Dinamarca desde 1807; em Bergen, na Noruega, em 1828; em Helsinque, na Finlândia, em 1849; esperando o museu mais completo: o Skansen de Estocolmo, em 1891.
A atenção à memória técnica que d'Alembert invocara na Enciclopédie manifesta-se pela criação, em 1852, do Museu das Manufaturas em Marlborough House em Londres.
As bibliotecas conhecem um desenvolvimento e uma abertura paralelos. Nos Estados Unidos, Benjamim Franklin tinha aberto desde 1731 uma biblioteca de Associações em Filadélfia.
Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos. A comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos países é erigido um Túmulo ao Soldado Desconhecido, procurando ultrapassar os limites da memória, associada ao anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em tomo da memória comum.
O segundo é a fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.
Pierre Bourdieu e a sua equipe puseram bem em evidência o significado do "álbum de família": "A Galeria de Retratos democratizou-se e cada família tem, na pessoa do seu chefe, o seu retratista. Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar-lhes, como um legado, a imagem do que foram... O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística do tempo perdido que estas apresentações comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas em ordem cronológica, "ordem das estações" da memória social, evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente. É por isso que não há nada que seja mais decente, que estabeleça mais a confiança e seja mais edificante que um álbum de família: todas as aventuras singulares que a recordação individual encerra na particularidade de um segredo são banidas e o passado comum ou, se se quiser, o menor denominador comum do passado, de nitidez quase coquetista de um monumento funerário freqüentado assiduamente" [1965, pp. 53-54].
Acrescentemos a estas linhas penetrantes uma correção e uma adição. O pai nem sempre é retratista da família: a mãe o é muitas vezes. Devemos ver aí um vestígio da função feminina de conservação da lembrança ou, pelo contrário, uma conquista da memória do grupo pelo feminismo?
Às fotografias tiradas pessoalmente junta-se a compra de postais. Tanto as fotos quanto os postais constituem os novos arquivos familiares, a iconoteca da memória familiar.

5. Os desenvolvimentos contemporâneos da memória
Concentrando-se nos processos de constituição da memória coletiva, Leroi-Gourhan dividiu a sua história em cinco períodos: "o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica" [ 1964-65, p. 65].
Acabamos de verificar o salto realizado pela memória coletiva no século XIX, que a memória em fichas mais não faz que prolongar, tal como a imprensa, fora a conclusão culminante da acumulação da memória desde a Antiguidade. Aliás, Leroi-Gourhan definiu bem os progressos da memória em fichas e os seus limites. "A memória coletiva tomou, no século XIX, um volume tal que se tornou impossível pedir à memória individual que recebesse o conteúdo das bibliotecas... O século XVIII e uma parte importante do XIX viveram ainda sob cadernos de notas e catálogos de obras; entrou-se em seguida na documentação por fichas que realmente apenas se organiza no início do século XX. Na sua forma mais rudimentar corresponde já à constituição de um verdadeiro córtex cerebral exteriorizado, já que um simples fichário bibliográfico se presta, nas mãos do utilizador, a arranjos múltiplos... A imagem do córtex é até certo ponto errada, pois se um fichário é uma memória em sentido estrito, é contudo uma memória sem meios próprios de rememoração e a sua animação requer a introdução no campo operatório, visual e manual, do investigador" [ibid., pp. 72-73].
Mas os desenvolvimentos da memória no século XX, sobretudo depois de 1950, constituem uma verdadeira revolução da memória e a memória eletrônica não é senão um elemento, sem dúvida o mais espetacular.
O aparecimento, no decurso da Segunda Guerra Mundial, das grandes máquinas de calcular, que deve ser introduzido na enorme aceleração da história, e mais particularmente da história técnica e científica a partir de 1860, pode ser recolocado numa longa história da memória automática. Pode-se evocar, a propósito dos computadores, a máquina aritmética inventada por Pascal no século XVII que, em relação ao ábaco, acrescenta à "faculdade de memória" uma "faculdade de cálculo".
A função da memória situa-se da seguinte forma num computador que compreende:
a) meios de entrada para os dados e para o programa;
b) elementos dados de memória, constituídos por dispositivos magnéticos que conservam as informações introduzidas na máquina e os resultados parciais obtidos no decurso do trabalho;
c) meios de cálculo muito rápido;
d) meios de controle;
e) meios de saída para os resultados.
Distinguem-se as memórias "fatoriais" que registram os dados a tratar e as memórias "gerais" que conservam temporariamente os resultados intermediários e certas constantes [cf. Demarne e Rouquerol, 1959, p. 13]. Encontra-se, em qualquer espécie de computador, a distinção dos psicólogos entre "memória a curto prazo" e "memória a longo prazo".
Em definitivo, a memória é uma das três operações fundamentais realizadas por um computador que pode ser decomposta em "escrita", "memória", "leitura" [cf. ibid., p. 26, fig. 10]. Esta memória pode em certos casos ser "ilimitada".
A esta primeira distinção na duração entre memória humana e memória eletrônica é necessário acrescentar "que a memória humana é particularmente instável e maleável (crítica hoje clássica na psicologia do testemunho judiciário, por exemplo), enquanto que a memória das máquinas se impõe pela sua grande estabilidade, algo semelhante ao tipo de memória que representa o livro, mas combinada, no entanto, com uma facilidade de evocação até então desconhecida" [ibid., p. 76].
É claro que o fabrico de cérebros artificiais, que apenas está no seu começo, conduz à existência de "máquinas que ultrapassam o cérebro humano nas operações remetidas à memória e ao juízo racional" e à constatação de que "o córtex cerebral, por muito admirável que seja, é insuficiente, como a mão ou a vista" [Leroi-Gourhan, 1964-65, p. 75]. No termo (provisório) de um longo processo, do qual tentei esboçar a história, constata-se que "o homem é conduzido progressivamente a exteriorizar faculdades cada vez mais elevadas" [ibid., p. 76]. Mas torna-se necessário constatar que a memória eletrônica só age sob a ordem e segundo o programa do homem, que a memória humana conserva um grande setor não-"informatizável" e que, como todas as outras formas de memória automáticas aparecidas na história, a memória eletrônica não é senão um auxiliar, um servidor da memória e do espírito humano.
Para além dos serviços prestados nos diferentes domínios técnicos e administrativos onde a informática encontra as suas primeiras e principais informações, é necessário aos nossos fins observar duas conseqüências importantes do aparecimento da memória eletrônica.
A primeira é a utilização dos calculadores no domínios das ciências sociais e, em particular, daquela em que a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto: a história. A história viveu uma verdadeira revolução documental – aliás, o computador também aqui não é mais que um elemento e a memória arquivista foi revolucionada pelo aparecimento de um novo tipo de memória: o banco de dados (cf. o artigo "Documento/monumento" neste volume da Enciclopédia).
A segunda conseqüência é o efeito "metafórico" da extensão do conceito de memória e da importância da influência por analogia da memória eletrônica sobre outros tipos de memória.
O mais espantoso destes exemplos é o da biologia. O nosso guia será aqui o prêmio Nobel François Jacob no seu livro La logique du vivant, une histoire de l'hérédité [1970].
Entre os pontos de partida da descoberta da memória biológica, da "memória da hereditariedade", encontra-se o calculador. "Com o desenvolvimento da eletrônica e o aparecimento da cibernética, a organização transforma-se em um objeto de estudo da física e da tecnologia" [1970, p. 267]. Esta impõe-se cedo à biologia molecular, que descobre que "a hereditariedade funciona como a memória de um calculador" [ibid., p. 274].
A investigação da memória biológica remonta pelo menos ao século XVIII. Maupertuis e Buffon entrevêem o problema: "Uma organização constituída por um conjunto de unidades elementares exige, para se reproduzir, a transmissão de uma "memória" de uma geração para outra" [ibid., p. 142]. Para o leibniziano Maupertuis, "a memória que dirige as partículas vivas para formar o embrião não se distingue da memória psíquica" (ibid., p. 92). Para o materialista Buffon, "o molde interior representa uma estrutura escondida, uma "memória" que organiza a matéria de forma a produzir a criança à imagem dos pais (ibid., p. 94). O século XIX descobre que "quaisquer que sejam o nome e a natureza das forças responsáveis pela transmissão da organização de pais para filhos, é agora claro que é na célula que devem ser localizadas" [ibid., p. 142]. Mas na primeira metade do século XIX, "apenas o 'movimento vital' pôde desempenhar o papel de memória e assegurar a fidelidade da reprodução" [ibid., p. 142]. Como Buffon, Claude Bernard ainda "coloca a memória, não nas partículas constituintes do organismo, mas num sistema particular que guia a multiplicação das células, a sua diferenciação, a formação progressiva do organismo", enquanto que Darwin e Haeckel "fazem da memória uma propriedade das partículas constituintes do organismo". Mendel descobre a partir de 1865 a grande lei da hereditariedade. Para explicá-la "é necessário fazer apelo a uma estrutura de ordem mais elevada, mais escondida ainda, mais profundamente encerrada no interior do organismo. É numa estrutura de ordem três que está alojada a memória da hereditariedade" [ibid., p. 226], mas a sua descoberta será por muito tempo ignorada. É necessário esperar pelo século XX e pela genética para descobrir que essa estrutura organizadora está encerrada no núcleo da célula e que "é nela que se aloja a "memória" da hereditariedade" [ibid., p. 198]. Finalmente, a biologia molecular encontra a solução. "A memória da hereditariedade está encerrada na organização de uma macromolécula, na 'mensagem' constituída pela disposição de 'motivos' químicos ao longo de um polímero. Esta organização toma-se a estrutura de ordem quatro que determina a forma de um ser vivo, as suas propriedades, o seu funcionamento" [ibid., p. 269].
Curiosamente, a memória biológica parece-se mais com a ,memória eletrônica que com a memória nervosa, cerebral. Por um lado, ela define-se também por um programa onde se vêem fundir duas noções: "a memória e o projeto" [ibid., p. 10]. Por outro lado, é rígida "pela elasticidade dos seus mecanismos; a memória nervosa presta-se particularmente bem à transmissão dos caracteres adquiridos. Pela sua rigidez, a de hereditariedade opõe-se a tal" [ibid., p. 11]. E mesmo, contrariamente aos computadores, "a mensagem da hereditariedade não permite a mínima intervenção concebida do exterior. Aí, não pode haver mudança do programa, nem sob a ação do homem, nem sob a do meio" [ibid., p. 11].
Para voltar à memória social, as convulsões que se vão conhecer no século XX foram, parece, preparadas pela expansão da memória no campo da filosofia e da literatura. Em 1896 Bergson publica Matière et Mémoire. Considera central a noção de "imagem", na encruzilhada da memória e da percepção. No termo de uma longa análise das deficiências da memória (amnésia da linguagem ou afasia) descobre, sob uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda, pessoal, "pura", que não é analisável em termos de "coisas" mas de "progresso". Esta teoria que realça os laços da memória com o espírito, senão com a alma, tem uma grande influência na literatura. Marca o ciclo narrativo de Marcel Proust, À Ia recherche du temps perdu (1913-27). Nasceu uma nova memória romanesca, a recolocar na cadeia "mito-história-romance".
O surrealismo, modelado pelo sonho, é levado a interrogar-se sobre a memória. Em 1822, André Breton anotou nos seus Carnets: "E se a memória mais não fosse que um produto da imaginação?" Para saber mais sobre o sonho, o homem deve poder confiar cada vez mais na memória, normalmente tão frágil e enganadora. Daí a importância no Manifeste du Surréalisme (1924) da teoria da "memória educável", nova metamorfose das Artes memoriae.
Aqui é necessário, certamente, evocar Freud como inspirador, em especial o Freud da Interpretação dos sonhos, onde afirma que "o comportamento da memória durante o sonho é certamente significativo para toda a teoria da memória". A partir do capítulo II, Freud trata da "memória no sonho" onde, retomando uma expressão de Scholz, crê notar que "nada do que possuímos intelectualmente pode ser inteiramente perdido". Mas critica "a idéia de reduzir o fenômeno do sonho ao da rememoração", pois existe uma escolha específica do sonho na memória, uma memória específica do sonho. Esta memória, também aqui, é escolha. Porém, Freud não tem a tentação de tratar a memória como uma coisa, como um vaso reservatório. Mas, ligando o sonho à memória latente e não à memória consciente e insistindo na importância da infância na constituição desta memória, contribui, ao mesmo tempo que Bergson, para aprofundar o domínio da memória e para esclarecer, pelo menos ao nível da memória individual, esta censura da memória, tão importante nas manifestações da memória coletiva.
A memória coletiva sofreu grandes transformações com a constituição das ciências sociais e desempenha um papel importante na interdisciplinaridade que tende a instalar-se entre elas.
A sociologia representou um estímulo para explorar este novo conceito, assim como para o conceito do tempo. Em 1950 .
Maurice Halbwachs publicou o seu livro sobre as memórias coletivas. A psicologia social, na medida em que esta memória está ligada aos comportamentos, às mentalidades, novo objeto da nova história, traz a sua colaboração. A antropologia, na medida em que o termo "memória" lhe oferece um conceito melhor adaptado às realidades das sociedades "selvagens" que esta estuda do que o termo "história", acolheu a noção e explora-a com a história, nomeadamente no seio dessa etno-história ou antropologia histórica que constitui um dos desenvolvimentos recentes mais interessantes da ciência histórica.
Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar histórico. Conversão partilhada pelo grande público, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retro, explorada sem vergonha pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vendem bem.
Pierre Nora nota que a memória coletiva, definida como "o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado", pode à primeira vista opor-se quase termo a termo à memória histórica como se opunha antes memória afetiva e memória intelectual. Até os nossos dias "história e memória" confundiram-se praticamente e a história parece ter-se desenvolvido "sobre o modelo da rememoração, da anamnese e da memorização". Os historiadores davam a fórmula das "grandes mitologias coletivas", "ia-se da história à memória coletiva". Mas toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pelo media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas. A história dita "nova", que se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva, pode ser interpretada como "uma revolução da memória" fazendo-a cumprir uma "rotação" em torno de alguns eixos fundamentais: "Uma problemática abertamente contemporânea... e uma iniciativa decididamente retrospectiva", "a renúncia a uma temporalidade linear" em proveito dos tempos vividos múltiplos "nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo" (lingüística, demografia, economia, biologia, cultura). História que fermenta a partir do estudo dos "lugares" da memória coletiva. "Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: estes memoriais têm a sua história". Mas não podemos esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: 'Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou de gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória".
Certamente que esta nova memória coletiva constitui em parte o seu saber com os instrumentos tradicionais, mas diferentemente concebidos. Compare-se a Enciclopédia Einaudi ou a Enciclopédia Universalis com a venerável Encyclopaedia Britannica! Em definitivo, talvez se encontre melhor na primeira o espírito da Grande Encyclopédie de d'Alembert e Diderot, também ela fruto de um período de recolha e de mutação da memória coletiva. Mas aquela manifesta-se sobretudo pela constituição de arquivos profundamente novos em que os mais característicos são os arquivos orais.
Goy [1978] definiu e colocou esta história oral, nascida sem dúvida nos Estados Unidos onde, entre 1952 e 1959, grandes departamentos de "oral history" foram criados nas universidades de Columbia, Berkeley, Los Angeles, desenvolvida em seguida no Canadá, em Quebec, na Inglaterra e na França. O caso da Grã-Bretanha é exemplar. A Universidade de Essex constitui unia coleta de "histórias de vidas", funda-se uma sociedade, a Oral History Society, criam-se numerosos boletins e revistas, como "History Workshops", que é um dos principais resultados e uma brilhante renovação da história social e, antes de mais, da história operária, através de uma tomada de consciência do passado industrial, urbano e operário da maior parte da população. Memória coletiva operária em busca da qual colaboram sobretudo historiadores e sociólogos. Mas historiadores e antropólogos encontram-se noutros campos da memória coletiva, na África como na Europa, onde novos métodos de rememoração, como o das "histórias de vidas", começam a dar os seus frutos.
No domínio da história, sob a influência das novas concepções do tempo histórico, desenvolve-se uma nova forma de historiografia – a "históriz da história" – que, de fato, é na maioria das vezes o estudo da manipulação pela memória coletiva de um fenômeno histórico que só a história tradicional tinha até então estudado.
Encontram-se, na historiografia francesa recente, quatro exemplos notáveis. O fenômeno histórico que foi objeto da memória coletiva é, em dois casos, um grande personagem: Folz [1950] estuda a recordação e a lenda de Carlos Magno, obra pioneira; Tullard [1971] analisa o mito de Napoleão. Mais perto das tendências da nova história, Duby renova a história de uma batalha, primeiro porque vê no acontecimento a pequena ponta de um iceberg e depois porque vê "esta batalha e a memória que ela deixou, como antropólogo' e segue, "ao longo de uma série de comemorações, o destino de uma lembrança no seio de um conjunto móvel de representações mentais".
Finalmente, Joutard [1977] reencontra no próprio seio de uma comunidade histórica, através dos documentos escritos do passado, e depois através dos testemunhos orais do presente, como ela viveu e vive o seu passado, como constituiu a sua memória coletiva e como esta memória lhe permite fazer face a acontecimentos muito diferentes daqueles que fundam a sua memória numa mesma linha e encontrar ainda hoje a sua identidade. Os protestantes de Cevenne, depois das provas das grandes guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, reagem face à Revolução de 1784, face à República, face ao caso Dreyfus, face às opções ideológicas de hoje, com a sua memória de camisardos, fiel e móvel, como toda memória.

6. Conclusão: o valor da memóriaA evolução das sociedades na segunda metade do século XX clarifica a importância do papel que a memória coletiva desempenha. Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção.
Mais do que nunca, são verdadeiras as palavras de Leroi-Gourhan: "A partir do Homo sapiens, a constituição de um aparato da memória social domina todos os problemas da evolução humana" [1964-65, p. 24]; e ainda: "A tradição é biologicamente tão indispensável à espécie humana como o condicionamento genético o é às sociedades de insetos: a sobrevivência étnica funda-se na rotina, o diálogo que se estabelece suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência melhorada" [ibid.]. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.
Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.
O caso da historiografia etrusca constitui talvez a ilustração de uma memória coletiva tão estreitamente ligada a uma classe social dominante que a identificação dessa classe com a nação significou ausência de memória, quando a nação desapareceu: "Não conhecemos os Etruscos, no plano literário, a não ser por intermédio dos Gregos e dos Romanos: não nos chegou nenhuma relação histórica, admitindo que esta tenha existido. Talvez as suas tradições históricas ou para-históricas nacionais tenham desaparecido com a aristocracia que parece ter sido a depositária do patrimônio mural, jurídico e religioso da sua nação. Quando esta deixou de existir enquanto nação autônoma, os Etruscos perderam, ao que parece, a consciência do seu passado, ou seja, de si mesmos" [Mansuelli, 1967, pp. 139-40].
Veyne, estudando o evergetismo grego e romano, mostrou admiravelmente como os ricos "sacrificaram então uma parte da sua fortuna para deixar uma recordação do seu papel" [1973, p. 272], e como, no Império Romano, o imperador monopolizou o evergetismo e, ao mesmo tempo, a memória coletiva: "sozinho, manda construir todos os edifícios públicos (à exceção dos monumentos que o senado e o povo romano erguem em sua honra)" [ibid., p. 688]. E o senado vingar-se-á por vezes pela destruição desta memória imperial.
Balandier fornece o exemplo dos Beti dos Camarões, para evocar a manipulação das "genealogias" cujo papel na memória coletiva dos povos sem escrita se conhece: "Num estudo inédito consagrado aos Beti dos Camarões meridionais, o escritor Mongo Beti relata e ilustra a estratégia que permite aos indivíduos ambiciosos e empreendedores "adaptar" as genealogias a fim de legalizar uma preponderância contestável" [1974, p. 195].
Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão.
Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica. Inspirando-se em Ranger [1977], que denunciou a subordinação da antropologia africana tradicional às fontes "elitistas" e nomeadamente às "genealogias" manipuladas pelos clãs dominantes, Triulzi convidou à pesquisa da memória do "homem comum" africano. Desejou o recurso, na África, como na Europa, "às recordações familiares, às histórias locais, de clã, de famílias, de aldeias, às recordações pessoais..:, a todo aquele vasto complexo de conhecimentos não-oficiais, não-institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais... que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos" [1977, p. 477].
A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.[J. Le G.].


Tradução: Bernardo Leitão e Irene Ferreira





As direções atuais da memória estão pois profundamente ligadas às novas técnicas de cálculo, de manipulação da informação, do uso de máquinas e instrumentos (cf. máquina, instrumento), cada vez mais complexos.







Pesquisar este blog